Monday, December 28, 2015

As Passas da Meia-noite

Imagem DR
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!
O Andaime, Fernando Pessoa

Meia-noite. Ano Novo. Champagne. Doze passas. Doze desejos. Faz parte da nossa natureza. Todos desejamos algo, ou alguém. Todos queremos obter o inalcançável. Melhorar as nossas condições. Todos queremos ser melhores do que somos, de quem fomos, do que a vida reservou para nós. Procuramos por uma estrela-cadente sob o céu nocturno. Deixamos uma moeda descansar no fundo de uma gruta ou de uma fonte. Sopramos as velas dos nossos bolos, e as pestanas dos nossos olhos. Enfeitamos as portas com Maias. Comemos doze passas.

No fundo, sabemos que uma simples uva secada e conservada para nosso consumo, nenhum poder tem para nos conceder algum desejo, além do saciar de um particular apetite por uvas passas. Pois não é essa a sua função. Da mesma forma que o meteoro que rasga a atmosfera durante a noite nada mais pretende que não desintegrar-se na sua abrupta queda até ao nosso Planeta. Tal como a moeda apenas quer cumprir o seu desígnio e circular entre estranhos até ao dia em que for guardada num qualquer álbum de um coleccionador, ou reciclada para formar novas moedas, quiçá de um valor superior.

Sabemos isto, contudo, a tradição persiste. O sonho continua vivo e os nossos desejos dele se alimentam. Pois muito daquilo que desejamos não passa disso, sonhos. Alguns impossíveis, outros improváveis, outros apenas à distância da nossa própria determinação. Olhemos para as zero horas do novo ano, não como uma altura para desejar algo em vão, mas como uma altura para redistribuir as nossas prioridades e para preparar os passos que desejamos seguir.

Nem todos os sonhos são fáceis de se concretizar. Alguns dependem apenas da sorte e estão fora do nosso controlo. Se o teu desejo é ganhar o Euromilhões, bem podes apostar todas as fichas nas doze passas, em trevos de quatro folhas ou em ferraduras de cavalo. Existe sempre a possibilidade de o venceres, sim, mas esta é tão pequena, que apenas um acto de pura sorte pode ajudar-te a concretizar esse desejo. É algo que está fora do teu controlo e que, sobre o qual nada podes fazer, além de registar o teu boletim e esperar pelo resultado.

O mesmo se aplica àqueles que desejam que a sua equipa seja campeã ou que vença uma competição europeia. Tal como tu, os adeptos dos teus rivais também desejam o mesmo. Se isso bastasse, uma tecnicalidade qualquer faria com que todos fossem co-campeões, ano sim, ano sim. Aqui, novamente, nada podes fazer além de a apoiares em todos os momentos. Podes fazer-te sócio, ir ao estádio ou ao pavilhão, bater palmas enquanto eles passam pela estrada, ou correm pelo tartan. Mas o resto depende inteiramente dos atletas, dos treinadores e das direcções. A tua camisola da sorte não impediu que eles perdessem aquele jogo. A tua presença no estádio não garante vitórias. Os teus cânticos oferecem uma ajuda anímica e empurram a equipa para a vitória, mas, no fundo, nada podes fazer para mudar o destino de uma época. A uva passa que comeste em nada afecta o que lhes vai acontecer ao longo do ano. Mas não a deixaste de comer.

Se há sonhos que estão fora do teu alcance, outros há que dependem apenas de ti. Se o teu desejo é arranjar um emprego, mudar, encontrar algo melhor, ou algo que te faça sentir mais realizado, apenas tens que te mexer. Esforça-te. Investe no teu currículo. Sai da tua zona de conforto. Regressa aos estudos se assim for necessário. Não tenhas medo de lutar por aquilo que queres. Emigra. Muda de cidade. Cria a tua empresa. Abre uma actividade. Profissionaliza o teu passatempo. Nenhuma uva passa pode fazer isto por ti. E cada moeda é uma ajuda na concretização deste sonho. Não a desperdices numa qualquer fonte. Não contamines mais as águas dessa gruta.

Já outros desejos não dependem apenas de ti. Se te queres apaixonar, não vais encontrar a resposta no fogo de uma estrela-cadente. Sai com os teus amigos. Fala com quem encontras pelo caminho. Conhece pessoas novas. Explora o teu Mundo e todos aqueles que te rodeiam. Viaja. Abre os teus horizontes. Visita os sítios que te apaixonam. Faz aquilo que amas. Alguém que deseja partilhar esses mesmos momentos contigo, acaba sempre por esbarrar no teu caminho. Apenas tens que estar de olhos bem abertos, e pronto para dar esse passo.

Não receies a rejeição. Cresce com cada não, em cada encontro, em cada beijo, em cada batida do teu coração. Melhora os aspectos que menos agradam em ti, mas mantém-te fiel a ti próprio. Não tentes ser alguém diferente de quem és, e lembra-te que são também os teus defeitos que te fazem único para a pessoa que te ama.

Podemos desejar a perfeição, mas não a podemos alcançar. Esquece as resoluções de ano novo. Nunca vais deixar de fumar, ou de beber. Nunca te vais inscrever num ginásio. Nem tão pouco vais começar a comer de forma mais saudável.

Não se apenas deixares tudo isto nas mãos de uma uva passa. Se desejas mesmo mudar um certo hábito em ti. Se desejas melhorar o teu corpo e a tua saúde, age. Levanta-te. Esforça-te. Motiva-te. Faz algo para que essas resoluções deixem de se repetir, ano após ano, sem qualquer efeito visível.

Se nada desejas mudar em ti mesmo, aceita quem és. Aprende a viver contigo próprio e a ser feliz com tudo aquilo que faz de ti quem tu és. A felicidade está ao alcance da tua determinação, e não nas folhas de uma rara erva daninha.

Meia-noite. Ano Novo. Champagne. Doze passas. Um momento para pensares em ti. No que desejas. No que queres. No que tencionas fazer agora que deixaste mais um ano para trás. As doze passas que hoje comes nada têm de mágico. Mas há magia neste momento. Há magia em ti. Há magia em quem não deixa o seu fado nas mãos do destino. Uma, duas, três. Doze passas já passaram. E tu? Como vais passar mais um ano?

Wednesday, December 23, 2015

O Regresso da Véspera da Véspera de Natal Parte IX

Design: Adriano Cerqueira

365 dias, 42 remakes, 28 bilharacos, 16 logos, 12 sequelas do Em Busca do Vale Encantado, 6 Pecados Mortais, 2 meses de Insanity, um Indominus Rex, One Punch Man e 0 pencas depois, sejam bem-vindos a mais um episódio do Regresso da Véspera da Véspera de Natal, o momento mais aguardado pelos dois leitores deste blogue e por todas as pessoas que hoje partilharam a hashtag Christmas Eve Eve!

O Son Goku estava nas palhas estendido à espera de um autocarro engolido por um gato para o levar para a floresta encantada. “Simon, a tua broca é a broca que vai perfurar a terra, os céus e todo o caminho até o amanhã”, disse Jesus, o Jorge que por ali passava ora nas palhas deitado, ora nas palhas estendido. Esse é o Cristo. Não, o Jorge. Jesus, o Cristo estava com o Vasco da Gama, o Eusébio, a Menina do Gás, o Mindo e a sua toalha em busca da terra desconhecida chamada Brasil. Mas a toalha não era do…? Isso é subjectivo!

Um tipo careca aproximou-se de Son Goku que por ali se encontrava, agora deitado a comer uma laranja ao lado do que podemos descrever como um gato cinzento gigante. Não devias ter feito estas referências ao teu vizinho Totoro no ano passado? O Postal de Natal era temático e tudo. Sim, mas agora devia aparecer o Mindo a dizer o quão subjectiva é a tua questão, mas ele foi com o Cristóvão Colombo procurar a terra desconhecida chamada Brasil. Não era o Vasco? O Palmeirim? Esse ainda está à procura do quarto Rei Mago. O persa Artaban? Não, um tal de Santiago. Não são dados muito às literaturas na Rádio Comercial.

“Ora viva e sejam bem-vindos a mais um programa da Rádio da Rádio”. Não estás no dia certo. 2010 já ficou muito atrás. Sim, sim, mas então e o Jesus, o Jorge? Braga e Funchal não lhe ficam bem, gosto mais de o ver em Alvalade, o verde realça mais os seus olhos. O que dizem os olhos do Son Goku? “Escolho-te a ti!” Não.

O tipo careca, que se chamava Saitama, disse Olá e perguntou ao Son Goku onde era o Pingo Doce mais próximo. Naquele momento Jesus, o Cristo, Vasco da Gama e a Menina do Gás apareceram em cima de uma Nau voadora com uma cara encrustada na face da proa. “Venham connosco se quiserem viver.” “Mas o Pingo Doce está com desconto nas laranjas”, disse Saitama aborrecido com toda esta situação. 

“Há um Pingo Doce cinco minutos a pé da nossa paragem”, gritou a Menina do Gás para o Saitama.

Saitama, Son Goku, a tolha, Vasco da Gama, Jesus, o Jorge, e a Menina do Gás largaram voo em busca da terra desconhecida chamada Brasil. 

“Onde vamos?”, perguntou Afonso Henriques que por ali passeava no seu Pégasos enquanto polia a sua espada de cinco metros. 

“Estamos em busca da terra desconhecida chamada Brasil. Precisamos do Mindo para subjectivar as situações que se vão sucedendo”, respondeu Jesus, o Cristo. Não era o Jorge? Também. E a toalha, não te esqueças da toalha. Sim, também já li o Hitchhiker's Guide to the Galaxy.

Chegados à terra desconhecida chamada Brasil, encontraram o Sexta-feira a falar com uma bola de voleibol. 

“Onde é o Pingo Doce?”, perguntou o Saitama.

“Tens que virar naquela palmeira e depois segues até ao Centro Cultural, depois do Carro Funerário.”

“O Cangalheiro vai à frente armado em bom rapaz, um dia irá atrás?”, perguntou o Son Goku.

“Sim, depois deve aparecer à vossa esquerda”, completou o Sexta-feira.

Por entre as árvores apareceu o Mindo com um saco de laranjas. “Eram as últimas do Pingo Doce.” 

Uma aura negra envolveu o nosso herói numa profunda onda de raiva. “Múltiplos murros normais!” Gritou Saitama, e o Mindo desapareceu, assim como toda a floresta que os rodeava. 

“O que aconteceu ao Mindo?”, questionou a Menina do Gás.

“Isso é subjectivo”, disse Saitama, nas palhas estendido com um saco das laranjas. Jesus, o Cristo, o Jorge, Son Goku, Vasco da Gama, o Afonso Henriques e o Sexta-feira deitaram-se nas palhas. Ora deitados, ora estendidos. Nas palhas. Sempre nas palhas.

Já ouviste falar em fios condutores? Não mas dava jeito para aquelas longas viagens em que só te apetece adormecer.

Enquanto o Mindo procurava aterrar num local minimamente suave, chegou o autocarro engolido por um gato. Saitama e o Son Goku levantaram-se e despediram-se dos restantes. Vasco da Gama, Sexta-feira, Jesus, o Cristo, e a Menina do Gás voltaram para a Nau e deixaram a terra desconhecida chamada Brasil em busca de um Mindo que nunca tinham visto mas que sabiam, dentro dos seus corações, que era subjectivo.

Em honra do Sagrado Chinelo, que morreu pelos nossos pecados, espalhem pelo Mundo as palavras de felicidade que só um dia como o 23 consegue transmitir. Pois hoje é a Véspera da Véspera de Natal. Dêem as mãos e cantem todos comigo:

Morram Pencas, morram! Pim!

Tuesday, December 22, 2015

Kung Fury

Kung Fury
A mixture of very broad and very sly that's quite simply a whole lot of fun.

Review on Rotten Tomatoes

Kung Fury is possibly the best thing ever. Wait, don’t leave. Stick around for a bit and let me explain why.

Let’s crunch the numbers. David Sandberg’s thirty one minute short is one of 2015’s biggest internet hits. Released on May 28th, it has, as of today, over twenty two million views on YouTube. This crowdfunding success, with a total budget of 630 thousand dollars, actually managed to place second in this year’s Directors' Fortnight section at the Cannes Film Festival. Seriously, if you haven’t seen it, what are you waiting for?

But what makes Kung Fury such a big success? Well, the Internet, of course. It all began when David Sandberg, a Swedish filmmaker, quit the commercial directing business, back in 2012, and focused on writing a script for an action comedy film set in the 1980s, inspired by action films of that era. He initially spent five thousand dollars on producing and shooting footage with his friends, which resulted in a trailer that swept the web by surprise.

The trailer was used for a Kickstarter campaign to produce a full feature film based on his script. With an initial bid of 200 thousand dollars, the trailer’s overnight success allowed them to raise over triple that amount and set them off on a journey through time back to the old days of NES Games and VHS players.

Kung Fury has the perfect recipe for timeless nostalgia. For those of us who grew up in the 80s and the 90s, this short film offers us what is probably the most action packed acid trip down memory lane that we could’ve ever wished for. Just have a look at the film’s synopsis.

During an unfortunate series of events a friend of Kung Fury is assassinated by the most dangerous Kung Fu master criminal of all time; Adolf Hitler, a.k.a Kung Führer. Kung Fury decides to travel back in time, to Nazi Germany, in order to kill Hitler and end the Nazi empire once and for all.

Oh, and it has Vikings and Laser Raptors too. What on Earth is a Laser Raptor? Just go watch the movie and find out. Seriously, just go. It’s free. And on YouTube. You can’t ask for a better bargain.

Kung Fury has just the right dose of nostalgia all mixed together in one great short film that will keep your eyes glued to the screen. It has a Van Damme cosplaying renegade cop, fighting pinball machines, muscle cars, NES Power Gloves, time-travel, old school 80s-style hacking, MS-DOS, VHS Tracking, Vikings, Dinosaurs, Kung Fu, Thor, Hitler, Nazis and David Hasselhof. Freaking David Hasselhof rekindled his music career with Kung Fury’s hit song “True Survivor”. You think you can hassle the Hof9000?

Nostalgia has grounded itself as one of our generation’s greatest trends. But why are we so pumped up over the 80s and the 90s? Well, because those are the decades where most of us who are now in charge of the production and development of online and creative content, grew up in.

We are the kids who grew up watching old VHS tapes to the point that they were simply unusable anymore. Who walked around with our Walkmen and our backpacks filled with cassette tapes. Who hanged out at old arcades to play 8-bit games. Who listened to The Doors and Pink Floyd albums on our dad’s record players. We are the ones who grew up without the internet or cellphones. The ones who couldn’t wait for the latest action figure from our favorite movie or TV show. The ones who woke up early every morning to watch cartoons. Where 3D was wearing red and green glasses to look at some cool images in a book, or at a poorly made animation on TV.

We grew up with silly action packed blockbuster movies, filled with ridiculously awesome one liners and buffed up dudes who couldn’t actually act but who were awesome at kicking some random bad guy's ass. Movies built upon foundations of unbelievable premises and seizure inducing unrealistic plots that never made any sense.

Kung Fury is a representation of all of this and so much more. It’s not afraid to present itself as what it is. A silly action packed sci-fi parody comedy of mid-80s action films. You can even purchase an actual VHS copy of this short film in their online store. Kung Fury speaks to its audience and gives them exactly what they’re longing to see. And it just doesn’t stop.

80s and 90s nostalgia is the bread and butter of the entertainment industry and it has been for a few years now. Although this trend will most likely eventually come to an end, for now, we are still fueling it with our unquenchable thirst for the good old days of our childhood. And even though we are perfectly aware that those days are never coming back, we can still find some comfort in well done throw backs and parodies just like Kung Fury.

Haven’t seen it, yet? What are you waiting for?

Thursday, December 17, 2015

As Terras do Meu Verão

Foto: Libelinha nas Margens do Rio Paiva; Autor: Adriano Cerqueira
Portugal
  • Amadora (Visita)
  • Arouca (Visita, Castanhas de Ovos e Pão-de-Ló)
  • Aveiro (Visita, Compras&Utilidades)
  • Barra (Visita, Tripas)
  • Canelas (Almoço)
  • Coimbra (Visita, Cinema, Compras&Utilidades)
  • Conimbriga (Visita às Ruínas Romanas)
  • Costa Nova (Visita, Minigolfe)
  • Espinho (Compras&Utilidades)
  • Espiunca (Caminhada pelos Passadiços do Paiva)
  • Gaia (Compras&Utilidades)
  • Gondomar (Batizado)
  • Ílhavo (Visita)
  • Lisboa (SBSR 2015, Visita)
  • Manteigas (Viveiro da Fonte Santa)
  • Matosinhos (Comic Com 2015)
  • Monção (Almoço, Visita)
  • Porto (Concerto de God is an Astronaut, Serralves em Festa, Visita, Cinema, Compras&Utilidades)
  • Santa Maria da Feira (Viagem Medieval, Compras&Utilidades)
  • São João da Madeira (Compras&Utilidades)
  • Sintra (Visita)
  • Sistelo (Visita)
  • Torre (Visita)
  • Torreira (Visita)
  • Vagos (Visita)
  • Valença (Visita)
  • Vila Real (Visita)

Tuesday, December 15, 2015

Do Alto de São João

Mar da Cova da Beira, Foto: Adriano Cerqueira
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

O Guardador de Rebanhos, Alberto Caeiro

Todas as manhãs atravesso uma pequena vila. Do Alto de São João vejo o quanto da cidade as suas escarpas me permitem. Da varanda da minha cozinha vejo, ao longe, as luzes do estádio invulgarmente acesas. O longínquo parece próximo, e o próximo, bom, o próximo resguarda-se por entre as brumas da noite. De manhã não é assim. Da janela do meu quarto vejo a ponte, as estradas e os carros que as alimentam. Vejo prédios e árvores. Vejo o quanto da cidade as suas paredes me permitem.

De manhã não vejo a cidade. Atravesso-a por momentos enquanto desço até à estrada, mas esta logo desaparece. Por entre vielas esquecidas e mal alcatroadas faço o meu caminho, a pé, sempre a pé. Atravesso uma pequena vila sem nome. Um oásis de pequenas casas e vivendas, com um ou outro apartamento a pontoar o meu caminho. Subo, desço, e volto a subir, por íngremes passeios com pouca ou nenhuma calçada. Dia sim, dia sim, atravesso esta vila. Sempre igual, inalterada pelos planos de uma urbe que a parece ter esquecido.

Achava-a assim, calma e constante, em todas as manhãs do meu caminho. Mero engano. Esta vila também começa, aos poucos, a sofrer alterações. Quando por ali passo não vejo Centros Comerciais, lojas, nem mesmo cafés. Não vejo Juntas de Freguesia, Câmaras Municipais, ou qualquer outro serviço. Conto pelos dedos os carros que se atravessam pelo caminho. E, a partir de um certo ponto, são mais as árvores que as casas que governam a paisagem.

Contudo, este pequeno pedaço de arredores limitados por uma placa quase imperceptível para quem ali passa, começa a sofrer algumas alterações. Assim é de há uns meses para cá. Com o passar dos meses assisti à conclusão de uma obra e ao nascer de outras duas. Uma casa, até então abandonada viu o seu quintal destruído, hoje ocupado por máquinas e cimento. Numa pequena ribanceira onde antes descansavam alguns pinheiros, está hoje a ser construído um prédio. Uma obra improvável para quem antes passava por ali.

Mas o pior estava reservado para esta semana. As árvores que em tempos guardavam a última descida que todas as manhãs faço, foram agora cortadas. Consigo ver para lá do prédio e da estrada que invariavelmente tenho que atravessar. O eucaliptal que se guardava do lado mais distante do caminho é agora visível a vários metros de distância. A terra está despida, o meu percurso é, agora, mais ventoso. A paisagem deixou de ser bela. Deixou de ser natural. O fim do meu passeio pela vila é agora apenas mais uma extensão da cidade que todas as manhãs ignorava.

Há um ano não era assim. Da minha janela via a escarpa da Serra. Uma queda de água. Velhos edifícios resgatados por uma natureza determinada em persistir às acções dos seus esquecidos habitantes. Uma ponte. Um mar de nuvens. O branco da neve, e as luzes nocturnas de uma cidade adormecida.

Todas as manhãs atravessava uma pequena cidade. Sempre com a vista dos extensos vales à minha esquerda. Passava por jardins, por lojas, igrejas, carros e pessoas. Passava pela Câmara, por bancos e outros serviços. Atravessava esta cidade de uma ponta à outra. Também então por subidas e descidas. Estas, bem diferentes daquelas por que hoje passo.

Pouco ou nada vi mudar nas incontáveis vezes que fiz este caminho. Uma ou outra loja abriu e pouco, muito pouco mais. A extensa paisagem manteve-se bela, inalterada, constante. Um fundo fácil de ser tomado como garantido. Fácil para alguns, difícil para mim.

Quão agradável é uma bela paisagem pela manhã. Hoje, o meu caminho apenas me desperta alguma curiosidade sobre a evolução das obras que crescem a cada dia que passa, e algum regozijo pelos carros que se enganam e seguem até uma rua sem saída apenas para voltarem para trás.

Erro induzido por mim, imagino, pois no fim dessa rua encontro uma escada e dois atalhos. Um alcatroado que me dá acesso à estrada e ao percurso mais longo para o meu destino, e outro, mais directo, por entre silvas e terra batida, impossível de atravessar à noite, e mais difícil ainda no Inverno.

Do Alto de São João vejo o quanto do meu caminho os prédios me permitem. Todas as manhãs atravesso uma pequena vila. Uma vila em constante mutação. Da pequena vila vejo quanto da Terra se pode ver no Universo. E, por enquanto, isso é suficiente.

Wednesday, December 09, 2015

A Minha Árvore de Natal

Christmas Lights; Foto: Adriano Cerqueira
O Christmas Tree, O Christmas tree,
How lovely are your branches!
In beauty green will always grow
Through summer sun and winter snow.

Desde que me conheço, e desde que tenho capacidade para o fazer, que sou eu quem monta e enfeita a Árvore de Natal em minha casa. É assim há anos, e ontem não foi excepção. Normalmente aproveito a ocasião para encher a casa com músicas de Natal enquanto enfeito a árvore, o presépio, e os restantes motivos que tradicionalmente se espalham pela sala, da entrada até à cozinha.

Talvez por causa do tempo cinzento que ontem se fazia sentir, ou por há três semanas atrás ainda andar de manga curta, desta vez, enfeitar a Árvore de Natal não passou de um acto mecânico. Como se não passasse de uma vulgar tarefa doméstica. Ou outra qualquer obrigação, feita com pouco, ou mesmo nenhum prazer.

Este ano não se fez ouvir nenhuma melodia natalícia. Nem sequer tirei uma única foto à árvore depois de enfeitada e apropriadamente iluminada. O único acto que ainda me fez sorrir foi a já habitual oferta de uma laranja ao Menino Jesus.

A verdade é que já há alguns anos que pouco ou nada muda nos nossos enfeites de Natal. Há alguns objectos que são já tradicionais e não podem ser evitados. As imagens do presépio, as três casas cobertas de neve, alguns enfeites da Árvore de Natal mais velhos que eu, as duas velas em forma de Pai Natal, os dois anjos, e a habitual estrela que descansa no topo. Nos últimos anos, a única coisa que mudou foram as luzes, isto porque as anteriores acabam sempre for falhar mais ano, menos ano, e alguns motivos novos que foram surgindo, ora por oferta, ora apenas porque sim.

A nossa colecção de postais também tem vindo a crescer. O topo do móvel da televisão está a ficar mais pequeno a cada ano que passa. Pela primeira vez, tive mesmo que deixar alguns postais de fora, ora por falta de espaço, ora porque não tinham valor suficiente para ficarem assim expostos.

Contudo, embora cada ornamento, cada postal, e cada figura conte uma história, a verdade é que fora estes pequenos pormenores, já não me revejo nesta Árvore de Natal. Sempre sonhei com uma árvore grande, daquelas que chegam quase até ao tecto. Em ambas as casas em que já vivi com os meus pais, não havia espaço para uma árvore dessas, e isto continua sem mudar. Se a primeira casa era muito pequena, nesta, a culpa recai na escolha de mobiliário feita pelos meus pais.

Ontem, enquanto preparava os enfeites e procurava desesperadamente em, literalmente, todas as gavetas pelos postais, apenas para os encontrar por baixo da cabana do presépio, pensava para mim próprio que precisávamos de novos ornamentos. Comecei a imaginar uma árvore feita do zero, com novas luzes, novas bolas, novas fitas, e uma nova estrela. Um sonho, para já, improvável.

Há já algum tempo que sinto que os anos passam como meses, os meses como semanas, e as semanas como dias. Talvez por isso, ainda não me sinta em Dezembro. Esta estranha onda de calor, que embora ténue, ainda hoje persiste, também não ajuda. Faltam cerca de duas semanas para o Natal, mas assim não parece. As noites são frias, os dias são amenos. As folhas ainda caem das árvores, coloridas em tons outonais como se ainda agora estivéssemos a entrar em Novembro.

Sim, já há pelo menos dois meses que é impossível entrar num centro comercial, ou ligar a televisão sem ouvir uma música de Natal, ver um enfeite, ou uma qualquer promoção natalícia, incentivando a onda de consumo já típica desta época do ano. Mas mesmo assim, questiono-me, onde está o espírito natalício?

Com o fim provisório do feriado de 1 de Dezembro, muitas famílias adiaram para ontem a preparação dos seus enfeites natalícios. Também eu aproveitei este feriado para alimentar uma tradição que durante anos, em minha casa, nunca teve uma data definida. Contudo, não o fiz com o habitual espírito que habitualmente cresce em mim ao longo desta época.

Talvez porque apenas lá passo os meus fins-de-semana. Talvez por não olhar para o apartamento que divido durante a semana como uma casa, mas sim como nada mais que um ponto de passagem. Talvez por ainda não sentir que hoje é Dezembro, e que 2015 está quase a terminar. Não consigo encontrar um motivo preciso, mas este ano ainda não encontrei o meu espírito de Natal.

A duas semanas da Véspera de Natal, ainda vou a tempo de o encontrar. Não fosse esta a minha época preferida. O dia por que mais espero ao longo de todo o ano. O dia mais quente. O dia mais feliz. O dia em que a minha árvore fica ainda mais bela. O dia de Natal.

Wednesday, December 02, 2015

The Man in the High Castle

Imagem DR
A weird time in which we are alive. We can travel anywhere we want, even to other planets. And for what? To sit day after day, declining in morale and hope.

Philip K. Dick, The Man in the High Castle

Sou um ávido consumidor de séries. Durante anos a minha lista de episódios semanal, entre sitcoms, séries e anime ultrapassava confortavelmente os dois dígitos. Encontrava tempo em todos os intervalos que tinha. Quando chegava a casa, depois do jantar e, se necessário, sacrificava uma ou duas horas de sono para me manter a par dos mais recentes desenvolvimentos.

Hoje, o meu tempo é muito mais escasso, e esses intervalos são bem mais curtos. Ainda tento manter-me a par das poucas séries que sobreviveram ao passar dos anos, mas à medida que estas são canceladas ou que simplesmente chegam ao fim, em vez de as substituir por algo novo, deixo um espaço vazio, preenchido por algo mais urgente.

Por este motivo, são raras as séries novas que consigo acompanhar. Por vezes, durante as férias, num fim-de-semana mais livre, ou numa noite mais longa, consigo recuperar algum do tempo perdido e dar uma olhadela nas sugestões mais recentes. Foi isso que aconteceu este fim-de-semana.

Pela primeira vez em algum tempo senti a necessidade de ver uma série inteira de uma só vez. Simplesmente não consegui parar. Embora a primeira temporada tenha apenas dez episódios, cada um tem a duração de uma hora. Dez horas. Foram dez horas partilhadas entre sábado e domingo, dedicadas apenas a esta série. Dedicadas à história de Frank e Juliana, de Joe e Smith, num Universo paralelo onde as forças do eixo saíram vitoriosas da Segunda Guerra Mundial. É esta a premissa de The Man in the High Castle.

Inspirada no livro homónimo do autor norte-americano Philip K. Dick, The Man in the High Castle é um olhar alternativo da História Mundial, através de um paralelismo ideologicamente inverso de uma Terra dividida ao meio entre duas superpotências, a Alemanha Nazi, genocida e tecnologicamente evoluída, e o Império Japonês, a desfolhar um leve princípio liberal mas tradicionalmente opressor.

Embora nos sejam oferecidos alguns aperitivos sobre como este novo Mundo é desenhado para lá das fronteiras dos EUA, a história desenrola-se quase inteiramente em três cidades norte-americanas, Nova Iorque, São Francisco e Canon City. Neste Universo os EUA foram divididos em três, o Grande Reich Nazi no lado este, os Estados Pacíficos Japoneses no lado oeste, e uma zona neutra conhecida como a União dos Estados Americanos Livres. Este terceiro não é mais que um país fantoche do Governo Nazi, uma “buffer zone” entre os dois impérios, uma zona sem lei, patrulhada por Marshalls, muito ao estilo do Velho Oeste.

Um Mundo alternativo, envolto por uma profunda carga negativa, expressa numa bela cinematografia, fria, carregada, enfim, adequada ao pesar que duas forças governadas por ideais malignos impõe sobre a pouca população que resta após vagas constantes de opressão, genocídio e lavagem cerebral.

The Man in the High Castle segue a história de um grupo de pessoas presas neste Universo. Uma série de películas começam a surgir com imagens da nossa História, dos eventos que não aconteceram neste Mundo. A vitória dos Aliados, a capitulação da Alemanha Nazi e do Império Japonês, a divisão da Alemanha, e o crescimento da União Soviética. Um grupo de resistentes tenta juntar estas películas com o objectivo de retaliarem contra as forças opressoras e, assim, recuperarem um Mundo que nunca viveram mas que é seu por direito.

Algumas componentes de Fringe, uma das minhas séries preferidas, surgem pontualmente, à medida que a narrativa se desenrola. Mas quem está à espera de ver o Peter e a Olivia a entrarem em acção para salvar o dia, ou o Walter a comer alcaçuz, desenganem-se. Não há espaço para comédia, luz, ou esperança neste Universo sombrio. Esta é uma série profunda, pesada. Uma história que durante os próximos dias vai ocupar os teus pensamentos, os teus sonhos. Uma série que te faz pensar. Uma série que tão cedo não vais esquecer.

O clima cinzento e deprimente põe em alerta os teus mecanismos de defesa. Por momentos podes sentir-te tentado em imaginar o Marty McFly e o Doc a aterrarem o seu DeLorean no meio de Times Square para reporem a linha do tempo original. Mas esse pensamento fugaz será efémero, pois durante os sessenta minutos de cada episódio, nada mais será capaz de prender a tua atenção. Não há como fugir ao Universo de The Man in the High Castle.

Aguardo ansiosamente pela segunda temporada desta série. Algo que pode nunca chegar a ver a luz do dia devido à polémica campanha de marketing desempenhada pelo estúdio produtor da série. Talvez colocar símbolos Nazis e do velho Império Japonês em metros e paragens de autocarro norte-americanos não sejam a melhor estratégia para publicitar o vosso produto. Especialmente quando o público ainda desconhece o conteúdo da série.

Polémicas à parte, The Man in the High Castle vale cada segundo das dez horas que compõe a primeira temporada. Desde a terrorífica música de abertura, aos pins da lapela dos oficiais das forças do eixo. É nos pormenores que esta série constrói a sua história. Na grandiosidade de um Universo Alternativo, de uma América dividida, de um Mundo em chamas, de um futuro sem esperança.

The Man in the High Castle merece todos os elogios. Uma narrativa cuja profunda qualidade tão cedo não sairá da nossa memória colectiva.

Thursday, November 19, 2015

Embaralhar

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Ou como a vontade colectiva de um povo é capaz de superar qualquer imposição, regra, ou legislação. Desde que me conheço que digo “embaralhar”. Alguns riem-se e dizem que é um erro. Outros presumem que não passa de um regionalismo. Mas para uma pequena percentagem da população, esta palavra nada mais é que um termo comum, tão correcto como qualquer outra palavra escrita até este ponto. Ignoremos o acordo ortográfico, pois “colectiva” e “correcto” são tão mais belos com aquele silencioso “c” por ali ilustrado.

Nunca fui um ávido jogador de cartas. Prefiro outros jogos como Uno, Monopólio, Cluedo e o ocasional Scrabble. Embora tenha experimentado um pouco de Magic, este não foi capaz de me seduzir. Apenas Pokémon, e o seu jogo de cartas, foram capazes de me forçar a entrar em torneios e a investir uma considerável quantidade de tempo e dinheiro num passatempo deste género. Mas mesmo essa tentação não foi além da minha pré-adolescência, e de um ocasional rasgo de nostalgia.

Nos torneios em que participava semanalmente no café “A Cave”, sempre que a situação o ditava dizia a palavra “embaralhar” com toda a naturalidade que esta sempre me reservou. Os restantes jogadores anuíam e também eles a repetiam sem pensarem uma ou duas vezes. Na praia, a jogar às cartas ou ao Uno com os meus pais, o mesmo acontecia. Não fossem eles quem me ensinou o sentido desta palavra.

Tive que aguardar até ao meu segundo ano de faculdade para ouvir pela primeira vez alguém a contestar o meu uso do termo “embaralhar”. Na altura achei peculiar o reparo. Nunca tinha ouvido a palavra “baralhar” até aquele ponto. Parecia um objecto estranho e alienígena. Essa palavra truncada é que parecia sim um erro em comparação com o meu fiel “embaralhar”.

Os restantes jogadores encolheram os ombros e disseram que não devia passar de um regionalismo. Não estava convencido. Fui pesquisar, e, de facto, tanto “embaralhar” como “baralhar” existem e encontram-se no dicionário. Têm ambas o mesmo significado, sendo que a primeira surgiu através da segunda.

“Embaralhar” não era um erro, mas sim um coloquialismo, uma palavra transformada pela oralidade, escrita em bom português e aclamada por um povo que viu no original “baralhar”, uma palavra sem jeito, mas com espaço para melhorar. Nasceu assim “embaralhar”, por aclamação popular e pela necessidade de registo de um termo comum, evoluído de outra palavra igualmente banal.

Gostamos muito de brincar com quem diz “arrebentar”, “alevantar” ou “ajuntar”. Contudo, são eles os donos da última gargalhada. Seja por teimosia, insistência, ou por mera coloquialidade, todas estas palavras figuram hoje no dicionário como termos correctos. Informais, decerto, mas correctos. Não são erros, mas sim meras palavras criadas pela adjunção do prefixo protético “a-“.

Nem todas possuem a beleza de um “embaralhar”, nem tão pouco são palavras capazes de soar inteligentes. Contudo, elas existem. Fazem parte da nossa língua, da nossa memória colectiva, e são hoje parte da nossa cultura.

A língua não é um ser estanque no epítome patamar da sua evolução. Mas sim um organismo vivo, em constante crescimento, sujeito à mais ínfima mutação do seu ADN, surja esta por decreto, por consenso, ou por aclamação popular.

Talvez seja hipocrisia da minha parte elogiar o acto de “embaralhar” e ser, contudo, incapaz de me livrar do “c” ou de me deixar levar por esse desnecessário acordo ortográfico. Talvez assim seja por dar mais valor à aclamação popular em detrimento de acordos fechados em salas escuras com pouco ou nenhum recurso à opinião daqueles que serão mais afectados por essas mesmas decisões.

Enfim, vou continuar a “embaralhar”, pois o Português é uma língua tão rica e cheia de potencial. Todos aqueles que contribuam para o seu crescimento e para o sem embelezamento, são bem-vindos.

São bem-vindos a participar na dança eterna do verbo lusitano que, ontem, como hoje, continua vivo, a crescer, a evoluir, e, enfim, a embaralhar.

Friday, November 13, 2015

Em Busca do Vale Encantado

The Land Before Time
Some things you see with your eyes, others, you see with your heart.

Littlefoot’s Mother, The Land Before Time

São raros os filmes que podemos ter a sorte de ver pela primeira vez em mais que uma única ocasião. Foi assim que começou a minha história com o Em Busca do Vale Encantado. O filme estreou em 1988 nos EUA, o mesmo ano em que nasci, mas apenas chegou a Portugal a 28 de Julho de 1989, mesmo assim, ainda era demasiado cedo para eu ter qualquer ideia ou vontade de o querer ver no cinema.

Tive que esperar mais sete anos por um dia de aulas especial. A minha professora da primária trouxe o filme em VHS para vermos naquela tarde. Não me recordo bem do ano, mas creio que foi em 96. Lembro-me que era uma tarde primaveril, não muito quente, nem muito fria. A minha escola não tinha os melhores meios, a única televisão que tínhamos já era velha, mesmo na altura, e bem pequena. Sentámo-nos todos em U nas cadeiras ou no chão a ver o filme, ou pelo menos a tentar. Na altura não o consegui ver bem. As outras crianças estavam impacientes, queriam brincar ou apenas estar na conversa. Lembro-me de algumas cenas do filme, meros flashes de recordações. Lembro-me do tom sombrio do ataque do Sharptooth, e da mãe do Littlefoot a defender o seu filho. Mas pouco mais.

A verdade é que na primeira vez que vi o Em Busca do Vale Encantado, não lhe prestei qualquer atenção. Meses mais tarde, o filme passou na RTP. Vi-o com a mesma atenção que dava a qualquer desenho-animado que encontrava na televisão, era já a segunda oportunidade que este filme tentava apelar à minha imaginação, mas por um motivo ou outro eu teimava em não ceder.

Foi apenas em Dezembro de 1997 que o vi pela primeira vez, que o vi verdadeiramente pela primeira vez. Nesse mês a RTP preparava-se para estrear na televisão nacional o Jurassic Park. Para comemorar essa data, esse Dezembro foi o mês dos Dinossauros. As semanas que antecederam a estreia do Jurassic Park ficaram marcadas por três filmes do Em Busca do Vale Encantado, todos eles dobrados em Português Europeu. Três versões únicas que nunca foram comercializadas em VHS ou DVD. Na primeira semana mostraram o filme original.

Embora já o tivesse visto duas vezes antes, desta vez fiquei agarrado. Lembro-me de chorar quando a mãe do Littlefoot morreu, da sensação de espanto e de felicidade que me assolou quando o Vale Encantado é revelado para o Littlefoot entre as nuvens no topo da cascata. Lembro-me da montanha russa de sensações que este pequeno filme me fez sentir. Quando terminou estava tão feliz. Sentia-me tão parvo por o não ter conseguido ver nas outras oportunidades que tive. Foi aí que a minha paixão por esta série de filmes começou.

Na semana seguinte mostraram o Em Busca do Vale Encantado III, O Tempo da Grande Partilha. Por algum motivo saltaram o segundo filme. Só o descobri meses mais tarde na biblioteca municipal. O terceiro filme foi durante muitos anos a minha sequela menos preferida. Passava bem sem o ver, muito por causa do primeiro e do segundo, mas mais ainda por causa do IV.

Dias antes da estreia de Jurassic Park, a RTP mostrou o Em Busca do Vale Encantado IV, Viagem através da Neblina. Nessa tarde tive que ir a um evento religioso numa terra longe de Ovar com os meus pais e a minha avó. Deixei então o vídeo a gravar para o poder ver mais tarde, e foi a melhor coisa que podia ter acontecido.

Quando alguém me pergunta qual é o meu filme preferido, a minha resposta é sempre a mesma, o Em Busca do Vale Encantado. Sem hesitações. Contudo, foi o quarto filme, a Viagem através da Neblina que me manteve colado a este franchise. É, até este dia, a minha sequela preferida e rivaliza com o filme original por um lugar especial no meu coração. A versão em Português Europeu é tão perfeita, das melhores dobragens que alguma vez vi. Tenho pena que a nunca tenham comercializado, contudo, graças a esse feliz infortúnio de a ter gravado, ainda hoje tenho comigo, agora em DVD, uma das poucas cópias alguma vez gravadas desta versão.

Não consigo sequer ver a versão em Português do Brasil, e mesmo a original em Inglês fica em segundo plano quando comparada com esta minha cópia do Em Busca do Vale Encantado IV. No ano seguinte consegui gravar também o filme original, já o III não mais voltou a ir para o ar.

A Viagem através pela Neblina é a sequela perfeita. Apresentam Ali, uma Long Neck como o Littlefoot, e a personagem que mistificou a série com a promessa do seu regresso. A cada nova sequela que saía aguardava impacientemente por algum sinal do seu retorno. Contudo, este apenas aconteceu na série de TV que já chegou tarde em 2007. Tarde e de uma forma desapontante, num episódio onde pouca ou nenhuma atenção é dada à personagem.

A minha paixão pelo Em Busca do Vale Encantado tardou a chegar, mas quando finalmente o senti, não mais o larguei.

Este Verão recebi a melhor notícia que nem em sonhos acreditava alguma vez chegar a ouvir. O Em Busca do Vale Encantado XIV estava em produção com estreia marcada para Fevereiro/Março de 2016.

Nove anos depois da última sequela e da série que acabaram com o franchise, o Em Busca do Vale Encantado está de regresso. Littlefoot, Cera, Ducky, Petrie e Spike estão de volta em mais uma nova aventura, após um longo período de ausência.

Voltei a escrever em fóruns e todos os dias procuro por novas informações sobre a data de lançamento do novo filme. O trailer deixou-me ansioso por este reencontro com as personagens que durante tantos anos ocuparam as minhas tardes. Dos meus mais velhos amigos ficcionais, da série de filmes que faz mais parte de mim do que qualquer outra coisa na minha vida.

Sinto-me como quando era criança e via os anúncios do lançamento das novas sequelas no Cartoon Network, e calculava pacientemente o número de meses que estas iriam demorar a chegar a Portugal.

Após tantos anos de ausência o Em Busca do Vale Encantado está de volta e não podia estar mais feliz.

Wednesday, October 21, 2015

October 21st 2015

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Of course it's erased! (…) It means your future hasn't been written yet. No one's has. Your future is whatever you make it, so make it a good one.

Dr. Emmett "Doc" Brown, Back to the Future III

Trinta anos após a estreia do primeiro filme, enfim chegou a icónica data do Regresso ao Futuro II, que marca a chegada de Marty McFly ao futuro. Esse longínquo futuro de 1985, imaginado com carros voadores, fusão a frio movida a lixo doméstico, filmes 3D, hoverboards, roupa ajustável ao corpo e faxes. Uma mescla de ficção científica ainda distante da realidade da versão actual de 2015, com algum saudosismo típico da década de 1980.

Olhando à distância de uma das mais aclamadas trilogias da História do Cinema, por vezes pensamos que pouco, ou quase nada, mudou nos últimos trinta, vinte e seis, ou vinte e cinco anos. Não temos carros voadores, ainda não somos capazes de viajar no tempo, existem filmes 3D e nunca foram tão populares, os videojogos são cada vez mais imersivos, têm melhores gráficos, mas ainda nos “obrigam” a usar as mãos. Não temos hoverboards, pelo menos, não como as do filme, e quanto a roupa ajustável, espero que não a tardem a inventar. Ser uma daquelas pessoas que está sempre algures perdida entre um M e um L, não é nada agradável, especialmente quando a disparidade entre tamanhos é tão vincada de loja para loja.

Back to the Future é uma das minhas trilogias preferidas. Daria prioridade a uma maratona de Back to the Future contra uma de Star Wars, Lord of the Rings, e até mesmo de Jurassic Park. Talvez apenas o Em Busca do Vale Encantado, mesmo com as suas doze, e em breve, treze sequelas, fosse capaz de tirar o lugar às aventuras de Doc e Marty McFly na minha lista de preferência para umas boas horas passadas em frente à TV.

Sou um fã incondicional de Regresso ao Futuro. Lembro-me de o ver na televisão quando era pequeno, de sonhar com carros voadores e com viagens no tempo. Não cheguei a apanhar muitos episódios da série de animação, e tenho apenas uma vaga ideia de como era. Desenhada ao estilo de Denver, the Last Dinosaur, Widget, the World Watcher e Captain Planet and the Planeteers, a série animada de Back to the Future também se centrava em temas que ainda hoje são actuais. Era uma série com um profundo aspecto vocacional e educativo, ao ensinar as crianças sobre Ciência e História, e ao preocupar-se com assuntos que ainda hoje preocupam a humanidade, como a poluição, as alterações climáticas e a protecção do planeta, assim como o nosso futuro como espécie e como habitantes da Terra.

Contudo, precisei ainda de esperar mais alguns anos para voltar a entrar em contacto com esta trilogia. Já estava na faculdade quando a TVI começou a passar os filmes ao sábado. Durante três semanas acompanhei-os como se os visse pela primeira vez. Nesse mesmo mês encontrei a caixa em DVD da trilogia na Fnac e comprei-a. Na altura custou-me cerca de 30 euros, um pequeno investimento para um incontável número de tardes passadas a ver cada pormenor e cada especial que esta colecção trazia.

Além da edição em DVD, possuo também o set da Lego Ideas com o famoso DeLorean, e as minifiguras de Doc Brown e Marty McFly, e as edições especiais Funko POP! de ambas as personagens, com o Marty acompanhado pela máquina do tempo, e a sua inesquecível matrícula “Out of Time”.

Talvez hoje numa linha do tempo alternativa, Marty já esteja em Hill Valley a tentar salvar o seu filho, mas, este 2015, não é o mesmo 2015 que a mente de Robert Zemeckis nos deu a conhecer. Para os verdadeiros fãs é uma data que merece ser celebrada, para os restantes é um dia como qualquer outro com uma pequena curiosidade partilhada nas redes sociais e na comunicação social. Para mim, é o dia que marca a publicação número 300, dos quase 10 anos de vida deste blogue.

E que melhor tema para a celebrar que a chegada de Marty McFly ao futuro?

Foram trezentos artigos entre crónicas, contos, poemas, citações, fotos, vídeos, e uma boa dose de nonsense constante. Quando comecei a escrever para este blogue, pouco mais de um ano depois de me aventurar pela blogosfera, não tinha nenhum plano em mente. Apenas queria escrever e ter um espaço onde pudesse publicar aquilo que tinha para dizer.

Quase dez anos depois, salvo raras excepções, continuo a escrever apenas para mim próprio. Este é um espaço onde a minha voz é ouvida, onde os meus pensamentos são livres para correr sem restrições, onde o mais íntimo dos meus momentos de introspecção tem o seu tempo de antena.

O No Sense of Reason é o projecto ao qual mais tempo dediquei em toda a minha vida. Sempre tentei publicar pelo menos um artigo por mês e escrever cerca de trinta artigos por ano. É pouco para um blogue que queira ser popular e lido por milhares de pessoas. Mas não escrevo para que me leiam, ou para fazer algum dinheiro com isto. Escrevo apenas porque sim. Porque tenho uma voz, e porque quero que ela seja ouvida. Mesmo que o único ouvinte seja um futuro Eu em busca de respostas nas entrelinhas dos seus pensamentos passados.

Estes foram apenas os primeiros trezentos capítulos de uma longa história ainda por escrever. Pois tal como Doc Brown diz na conclusão da saga de Back to the Future, o futuro ainda não foi escrito. Está apenas ao alcance da nossa imaginação, do nosso esforço, e da nossa ambição.

“Where we’re going, we don’t need roads.”

Friday, October 09, 2015

Esquecidos Costumes

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Para ser grande, sê inteiro: nada 
       Teu exagera ou exclui. 
Sê todo em cada coisa. 
       Põe quanto és 
No mínimo que fazes. 
       Assim em cada lago a lua toda 
Brilha, porque alta
Ricardo Reis, in “Odes”

Na Primavera de 2013 estava ainda a habituar-me ao clima e às particularidades da Covilhã. Sendo esta uma terra de extremos, de graus negativos e neve no Inverno, a calor sufocante no Verão, a Primavera e o Outono são duas estações negligenciáveis, que duram pouco mais de uma ou duas semanas. Depois de um Abril especialmente chuvoso, chegou um Maio seco e bipolar, com temperaturas altas e muito Sol durante o dia, e um frio de gelar os ossos durante a noite.

Nunca me dei bem com estas diferenças de temperatura, especialmente em ambientes mais secos. Um dia, enquanto estava a trabalhar, comecei a sangrar pelo nariz. Embora isto não tenha voltado a acontecer desde então, na altura o episódio forçou-me a cortar com uma das minhas mais velhas tradições. Substituí o meu lenço característico por lenços de papel. Esta medida devia apenas ser temporária enquanto me habituava ao clima seco da Covilhã.

Os meses foram passando, e continuei a usar lenços de papel. Até então apenas os usava quando me encontrava constipado, tendo o meu lenço de pano um papel preponderante na minha rotina de objectos que acompanham as minhas viagens ao longo dos dias.

Há uns meses atrás, durante uma ligeira crise de identidade tentei voltar a usar os meus lenços. Este curto regresso não durou mais que algumas semanas. Entretanto constipei-me e não voltei a usá-los desde então. Confesso que durante o curto período em que os voltei a usar senti-me mais confortável, e deixei-me envolver por um velho sentimento de segurança. De algo que tão bem conhecia e que durante tanto tempo fez parte de mim.

Certas tradições, rotinas, ou costumes que guardamos em nós, ajudam a construir a nossa identidade, e transformam-se, aos poucos, em âncoras que ajudam a nos manter firmes na realidade do momento, e que nos relembram quem somos e de onde viemos.

Tal como os lenços, existem outros aspectos da minha personalidade que mudei ao longo dos anos, ora forçado pelas circunstâncias de certos episódios, ora apenas porque sim. Em tempos não conseguia sair de casa sem o meu relógio, e embora tivesse também recentemente voltado a usar um, tal tentativa durou pouco tempo. Já não como com os talheres nas mãos opostas, nem ponho açúcar nos iogurtes. Há pouco tempo voltei a fazer sandes com o meu almoço da cantina, mas durante vários meses deixei de o fazer.

Algumas coisas vão e vêm, outras desaparecem para sempre, ou por tempo indeterminado. São estas pequenas coisas, estes pequenos costumes, que fazem de mim quem eu sou. São coisas que me distinguem dos outros, não de forma propositada, mas sim vítimas da minha educação, ou por mero capricho.

No outro dia, enquanto assistia à estreia da segunda temporada da série The Flash, vi um dos personagens oferecer um lenço a uma amiga dele que estava a chorar. A reacção dela foi um breve sorriso seguido de, “andas com um lenço? Tens o quê, 80 anos?” Não tenho 80 anos, e já não ando com um lenço. Não tenho nenhum motivo que me faça não andar com um lenço. Mesmo hoje guardo alguns no meu novo apartamento, embora já não os use há meses.

Talvez seja a preguiça a falar, talvez já não faça sentido usá-los. Não sei. Apenas sei que, por vezes, sinto que parte de mim está em falta. Que não estou completo. Contudo, seja o que for essa parte que agora encontro ausente, sinto-a ao meu alcance, longe, mas sempre disponível a reagrupar-se com os restantes pormenores que fazem de mim quem eu sou.

A nossa personalidade é definida pela soma de todas as pequenas partes que fazem de nós um todo, único, especial, inimitável, ímpar e singular.

Por enquanto continuo a usar lenços de papel. Talvez um dia assim não seja. Talvez. Um dia.

Wednesday, October 07, 2015

Desnecessárias Edições Limitadas

Jurassic World Edição Limitada
“Ó não! A minha vida não vai ficar completa enquanto eu não tiver isso.” Já por diversas vezes sugeri que o Paulo criasse um canal, ou uma espécie de podcast, para que ele pudesse partilhar com o Mundo a sua inigualável forma de narrar eventos da sua vida, e de sumarizar filmes, séries, livros ou jogos. Ele consegue explicar uma receita, ou comentar um evento qualquer de uma forma cómica e exageradamente expressiva, capazes de tornar o episódio mais banal num momento deveras hilariante. Por mais que tente descrever este seu talento, ele é algo que precisa de ser vivido e presenciado em primeira-mão.

Na última sexta-feira, estávamos no Sal & Pimenta, como de costume – este ano ainda não saímos uma única vez no Furadouro, o Verão já passou e as noites já se sentem frias, parece-me que o Paralelo é cada vez mais apenas um velho pedaço de memorabilia de um passado distante dos nossos encontros – e entre uma conversa sobre filmes, perguntei ao Luís se ele já tinha visto a edição especial em Blu-ray do Jurassic World com duas miniaturas do T-Rex e do Indominus Rex em pose de combate. A resposta do Paulo foi imediata, aliás, quase nem me deixou acabar de falar, como sempre, nem deu tempo para o Luís me responder. “Ó não! A minha vida não vai ficar completa enquanto eu não tiver isso” – isto dito naquele seu jeito particular, e num profundo tom de sarcasmo que rivaliza com qualquer sketch dos Monty Python.

Ontem, enquanto explorava a minha necessidade de controlo, encontrei-me a pensar nesse momento. Na verdade, raro é o dia em que não me questiono sobre esta sua exaltação momentânea, desde que ela aconteceu. Tentei arranjar forma de a incluir na minha última crónica, mas simplesmente não era o espaço adequado. “Ó não! A minha vida não vai ficar completa enquanto eu não tiver isso”, é uma expressão que quando lida fora do contexto, pode dar aso a duas possibilidades. A primeira, ou melhor, aquela que é mais natural para mim, pois não só presenciei o momento, como este foi dirigido directamente à minha pessoa, é a mesma que o Paulo quis expressar. Ironia, sarcasmo, chamem-lhe o que quiserem, é uma frase que desvaloriza o objecto e o remete para o profundo abismo das coisas que ignoramos à primeira vista.

A segunda possibilidade é uma interpretação mais literal, de desejo imediato por esse mesmo objecto. Que, confesso, foi a minha reacção quando descobri que este Blu-ray existia. Desde pequeno que sou fã de Jurassic Park. Ainda antes do Em Busca do Vale Encantado me ter desperto a paixão por Dinossauros, e o meu sonho de ser Paleontólogo, já o Jurassic Park ocupava um lugar especial na minha infância e no meu imaginário. Sonhava com Dinossauros, em viajar no tempo, em poder tocá-los e viver entre eles. Em tê-los como animais de estimação, em dar o nome a uma nova espécie, ou em simplesmente admirar a sua beleza e a sua capacidade de nos espantarem com o seu Universo alienígena de um Mundo Perdido na História da Terra.

Ao longo da minha infância coleccionei diversas réplicas de Dinossauros. Tenho o Jurassic Park, o Mundo Perdido e o terceiro filme em DVD e em Blu-ray. Guardo e exponho religiosamente os meus brinquedos do Mundo Perdido, ora no sótão, ora no meu quarto. Mesmo hoje, mal saiu o Jurassic World, comecei a colecionar os seus respectivos sets da Lego, que agora ocupam o espaço dedicado aos meus velhos sets que tantos anos aguardaram por uma nova oportunidade de serem recuperados.

Portanto, não seria de admirar que mal descobri essa edição especial, o meu primeiro pensamento foi, “tenho que ter isto”. O preço é muito pouco convidativo, 80 dólares na Amazon. É uma edição limitada que ainda não está disponível em Portugal, se é que alguma vez chegará a estar. Para já, no site da Fnac não existe qualquer informação sobre esta edição especial, e mesmo o Play.com não a tem à venda.

Posso simplesmente esperar que esta tenha um preço mais aliciante, que surja alguma promoção, ou então aguardar por alguma pechincha de última hora no eBay. Posso até mesmo ignorá-la e comprar apenas o Blu-ray normal, cujo preço não tardará a rondar os dez euros, mais coisa, menos coisa.

Posso fazer isto, e normalmente sempre o faço. Mesmo com o último álbum dos New Order, a minha banda preferida, decidi aguardar para que este tenha um preço mais acessível antes de o comprar. Sei ser paciente, e sei aguardar pelo momento certo para fazer uma compra. Embora hajam algumas excepções a esta regra, não me considero um comprador compulsivo. Contudo, são incontáveis as coisas “desnecessárias” que comprei ao longo dos anos.

Uso a palavra “desnecessárias” entre aspas, pois quando gostamos de algo e podemos tê-lo, seja ele um livro, um CD, um vinil, um DVD, um brinquedo, um pedaço de memorabilia de um filme, ou de uma série, uma peça de roupa que raramente iremos usar, ou outro objecto qualquer, não há mal nenhum em considerar esse investimento como um bem necessário. Construímos pequenos pedaços da nossa identidade com aquilo que compramos, e com aquilo que decidimos mostrar ao Mundo, por mais infantil, abstracto, ou inútil que esse objecto seja.

Sou um coleccionador nato. Não colecciono apenas uma coisa, nem tenho uma obsessão por algo como postais, moedas, selos ou pacotes de açúcar. Colecciono recordações, pedaços da minha infância, da minha vida, das coisas que gosto e que me fazem feliz. Por isso tenho ainda bem estimados todos os meus Power Rangers, Dinossauros, Legos, Cartas Pokémon, Fósseis, Minerais, T-Shirts de Concertos, CDs, DVDs, Vinis, Livros, Cromos, Brinquedos de Caixas de Cereais, Carros de Colecção, Jogos de Tabuleiro, Puzzles, Canecas, Bilhetes de Cinema, Postais, Fotografias, enfim, uma longa lista tão extensa, como interminável.

Algumas destas coisas estão melhor organizadas que outras. Algumas tiveram direito a expositores ou a lugares privilegiados em estantes e outros móveis da minha casa, outros estão guardados em gavetas e caixas, mas todos eles estão ao alcance da minha memória, e facilmente consigo localizá-los sem perder muito tempo.

Não são bens de primeira necessidade. Não. Consigo viver sem eles. A minha vida não seria menos completa se não os tivesse, e a minha carteira estaria bem mais cheia. Mas cada um deles é um momento material das minhas recordações. Cada objecto conta uma história. Cada objecto é único. Uma parte de um todo bem maior que compõe quem eu sou.

Uma vez, em casa do Luís, ele contou-me que gostava muito do seu quarto e que às vezes ficava apenas deitado a olhar para as suas coisas e a pensar como estas diziam tanto sobre ele. O mesmo acontece comigo, não tanto no meu quarto, por falta de espaço, mas no salão do meu sótão. Em poucos minutos, uma pessoa que observe esses dois espaços com o mínimo de atenção é capaz de ficar a conhecer mais sobre mim do que se passasse longas horas em conversa comigo. Especialmente se o Paulo estivesse lá para me interromper constantemente.

A minha vida é bastante completa sem a edição limitada em Blu-ray do Jurassic World. E nada mudará em mim se algum dia a vier a comprar. Contudo, confesso que a quero ter. Apenas porque sim. Porque o T-Rex está bem desenhado, porque a caixa é bonita, e porque o Indominus Rex, embora não me agrade, também se conjuga muito bem com todo o ensemble desta edição limitada.

Todas as coisas que tenho comprei-as porque podia. Não passei fome para as ter. Não deixei de viajar para as ter. Não aceitei um emprego fora da minha área para as ter. E fora aquelas que recebi quando ainda era criança, ou como prenda de aniversário, comprei-as todas com o meu dinheiro. Hoje podia ter um pé-de-meia interessante, talvez, mas não me arrependo do dinheiro que gastei em nenhuma delas. E também, sejamos sinceros, tudo aquilo junto não representa sequer metade daquilo que gasto num ano em renda ou em comida.

No Mundo do Digital eu gosto de ter os meus Livros, os meus CDs, os meus Vinis, os meus DVDs e os meus Blu-rays. Quero ter essa colecção física para um dia a poder partilhar com quem me é próximo e até mesmo, quem sabe, com os meus filhos. Da mesma forma que hoje ouço os vinis do meu pai, e leio os seus livros, um dia quero que os meus filhos façam o mesmo. E ao contrário de tantas histórias de adultos saudosistas pelos seus há muito perdidos brinquedos de infância, desejo preservar os meus para a posteridade, apenas porque sim. O meu pequeno museu pessoal das coisas que mais prazer me deram ao longo da minha vida.

A minha vida é completa não pelas coisas que tenho, mas sim pelas pessoas que amo e que me amam de volta. Tudo o resto são apenas recordações, diários físicos de uma linguagem universal, fácil de decifrar pelo mais atento dos observadores.

Quero muito ter essa edição especial. Mesmo sem ela, a minha vida já é completa. Mas quero muito tê-la. Apenas porque sim.