Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
O Guardador de Rebanhos, Alberto Caeiro
Todas as manhãs atravesso uma pequena vila. Do Alto de São João vejo o quanto da cidade as suas escarpas me permitem. Da varanda da minha cozinha vejo, ao longe, as luzes do estádio invulgarmente acesas. O longínquo parece próximo, e o próximo, bom, o próximo resguarda-se por entre as brumas da noite. De manhã não é assim. Da janela do meu quarto vejo a ponte, as estradas e os carros que as alimentam. Vejo prédios e árvores. Vejo o quanto da cidade as suas paredes me permitem.
De manhã não vejo a cidade. Atravesso-a por momentos enquanto desço até à estrada, mas esta logo desaparece. Por entre vielas esquecidas e mal alcatroadas faço o meu caminho, a pé, sempre a pé. Atravesso uma pequena vila sem nome. Um oásis de pequenas casas e vivendas, com um ou outro apartamento a pontoar o meu caminho. Subo, desço, e volto a subir, por íngremes passeios com pouca ou nenhuma calçada. Dia sim, dia sim, atravesso esta vila. Sempre igual, inalterada pelos planos de uma urbe que a parece ter esquecido.
Achava-a assim, calma e constante, em todas as manhãs do meu caminho. Mero engano. Esta vila também começa, aos poucos, a sofrer alterações. Quando por ali passo não vejo Centros Comerciais, lojas, nem mesmo cafés. Não vejo Juntas de Freguesia, Câmaras Municipais, ou qualquer outro serviço. Conto pelos dedos os carros que se atravessam pelo caminho. E, a partir de um certo ponto, são mais as árvores que as casas que governam a paisagem.
Contudo, este pequeno pedaço de arredores limitados por uma placa quase imperceptível para quem ali passa, começa a sofrer algumas alterações. Assim é de há uns meses para cá. Com o passar dos meses assisti à conclusão de uma obra e ao nascer de outras duas. Uma casa, até então abandonada viu o seu quintal destruído, hoje ocupado por máquinas e cimento. Numa pequena ribanceira onde antes descansavam alguns pinheiros, está hoje a ser construído um prédio. Uma obra improvável para quem antes passava por ali.
Mas o pior estava reservado para esta semana. As árvores que em tempos guardavam a última descida que todas as manhãs faço, foram agora cortadas. Consigo ver para lá do prédio e da estrada que invariavelmente tenho que atravessar. O eucaliptal que se guardava do lado mais distante do caminho é agora visível a vários metros de distância. A terra está despida, o meu percurso é, agora, mais ventoso. A paisagem deixou de ser bela. Deixou de ser natural. O fim do meu passeio pela vila é agora apenas mais uma extensão da cidade que todas as manhãs ignorava.
Há um ano não era assim. Da minha janela via a escarpa da Serra. Uma queda de água. Velhos edifícios resgatados por uma natureza determinada em persistir às acções dos seus esquecidos habitantes. Uma ponte. Um mar de nuvens. O branco da neve, e as luzes nocturnas de uma cidade adormecida.
Todas as manhãs atravessava uma pequena cidade. Sempre com a vista dos extensos vales à minha esquerda. Passava por jardins, por lojas, igrejas, carros e pessoas. Passava pela Câmara, por bancos e outros serviços. Atravessava esta cidade de uma ponta à outra. Também então por subidas e descidas. Estas, bem diferentes daquelas por que hoje passo.
Pouco ou nada vi mudar nas incontáveis vezes que fiz este caminho. Uma ou outra loja abriu e pouco, muito pouco mais. A extensa paisagem manteve-se bela, inalterada, constante. Um fundo fácil de ser tomado como garantido. Fácil para alguns, difícil para mim.
Quão agradável é uma bela paisagem pela manhã. Hoje, o meu caminho apenas me desperta alguma curiosidade sobre a evolução das obras que crescem a cada dia que passa, e algum regozijo pelos carros que se enganam e seguem até uma rua sem saída apenas para voltarem para trás.
Erro induzido por mim, imagino, pois no fim dessa rua encontro uma escada e dois atalhos. Um alcatroado que me dá acesso à estrada e ao percurso mais longo para o meu destino, e outro, mais directo, por entre silvas e terra batida, impossível de atravessar à noite, e mais difícil ainda no Inverno.
Do Alto de São João vejo o quanto do meu caminho os prédios me permitem. Todas as manhãs atravesso uma pequena vila. Uma vila em constante mutação. Da pequena vila vejo quanto da Terra se pode ver no Universo. E, por enquanto, isso é suficiente.
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