Tuesday, May 07, 2013

O dia em que nada fiz

Passava pouco das seis e meia da manhã quando acordei de sobressalto. O meu braço doía, estava dormente. Abri a boca para respirar como se da primeira vez se tratasse. Arrastei a minha mão para o lado em esforço. A pouca mobilidade que restava ao meu braço era apenas suficiente para redistribuir o peso do meu corpo. 

Fiquei ali. Deitado. Ligeiramente ofegante. À espera. À espera que a circulação regressasse. À espera para voltar a ter forças para me mexer. Sentia o calor dos primeiros raios de sol a penetrarem no meu quarto através dos interstícios da persiana. Aguardei alguns momentos até poder sentir novamente a minha mão. A vida. A força. A agilidade tinha regressado. Finalmente era capaz de me mover.

Virei-me de barriga para cima e direccionei o meu olhar para o tecto. Fechei os olhos durante alguns momentos. Mantinha-os cerrados na tentativa que o sono regressasse. Não me lembro. Não me consigo lembrar. Estaria num local feliz ou a fugir de outro pesadelo. Não me consigo lembrar. Abri os olhos.

O sol incidia com maior intensidade através da janela. Voltei-lhe as costas e estiquei o braço. Embora o meu quarto começasse a ter alguma claridade, grande parte ainda permanecia envolvida na escuridão da noite. Procurei o meu telemóvel na mesa que mantenho convenientemente distanciada da minha cama. É mais fácil convencer o meu corpo a largar o seu terno e confortável abraço se uma vontade maior me obrigar a levantar. 

Encontrei o meu telemóvel e puxei-o para mim. Fiquei incrédulo a olhar para as horas. Era cedo. Demasiado cedo para alguém que apenas se tinha deitado à uma da manhã. Coloquei-o de volta na mesa e tentei adormecer. Acordava atordoado de tempos a tempos sem nunca conseguir regressar ao meu sonho. Sem nunca conseguir voltar a descansar.

Sete e meia. Aquele toque inconfundível despertava-me de um estado de profundo ennui. Calei-o com o deslizar de um dedo. Tenho saudades do meu despertador de casa. De acordar com a rádio e não com um toque cíclico, impessoal e imelodioso. É tão anti climático silenciá-lo assim. Sinto falta de carregar com força num botão duro e rugoso e de violentamente martelá-lo por inúmeras vezes. Forçá-lo ao silêncio a cada nove minutos até àquele momento de auto-realização em que descubro que estava a pressionar o botão errado. 

Tenho saudades do despertador do meu quarto. Este é o meu quarto, mas não é o meu quarto. Não é o meu quarto, é apenas meu. 

Voltei a cerrar os olhos. Mais meia hora. Pensava. A latência tomou lugar e o tempo passou. Lentamente contava os minutos. Sem adormecer. Sete e quarenta e três. Sete e quarenta e sete. Às oito acordo. Às oito.

Eram oito e seis quando o tempo começou a acelerar. Oito e um quarto. Tinha que sair de cama. Era tarde. Não me sentia atrasado. Mas estava. Muito atrasado. Levantei-me e o tempo regressou ao seu ritmo natural.

Abri a janela. Sol. Uma mentira que ameaçava ter curta duração. As montanhas prolongavam-se até ao horizonte. Silêncio. Apenas o som constante da queda de água alimentava os meus ouvidos. Abri as gavetas e procurei a roupa que ia usar naquele dia. Queria apenas regressar à minha cama. Regressar a um sonho qualquer. Mergulhar nesse mundo e deixar-me envolver pelos lençóis. Perder-me eternamente num profundo relaxamento. Perder-me até que a vontade de acordar fosse mais forte que o sono.

Oito e cinquenta e três. Estou a olhar para o frigorífico. O pacote de soja que ontem tinha aberto não estava lá. Não estava lá. Talvez se tenha estragado de um dia para o outro. Encontrei-o no armário e ainda estava por abrir. O anterior ainda tinha um resto que eu guardei do fim-de-semana. Usei-o ontem. Agora lembro-me. Derramei os cereais e deixei-os envolver pelo líquido de soja. Tomei o pequeno-almoço com uma lenta pressa. 

Olhava para o relógio da cozinha enquanto comia. Trocava o meu olhar entre o prato e o relógio. O prato e o relógio. Silêncio.

Mais ninguém estava acordado. Apenas eu. Apenas eu. Eram nove e dez. Sem tempo para lavar o prato dirigi-me para o quarto. Calcei-me. Peguei nas chaves e saí. Começava a descer as escadas quando reparei que o elevador ainda ali estava. 

Não tenho por hábito usá-lo. Não para descer. Nunca para descer. Mas hoje abri a porta e entrei nele. Saí para a rua impressionado com o agradável calor que se fazia sentir. Ontem ameaçara chover, sem efeito.

Cruzei-me com estranhos. Alguns inéditos nestes meus passeios matinais. Outros, já conhecidos por frequentarem aquele local àquela hora. A todas as horas de tudo o que eu sei. Pois deles nada conheço além da sua habitual presença. 

Estavam menos carros estacionados no passeio. Menos do que é costume. A passadeira estava verde e algumas pessoas já passeavam e conversavam umas com as outras, ou apenas consigo próprias. 

Apanhei o elevador quando este estava a descer. Oito e vinte e três. Aguardei. Ontem estava avariado e vi-me forçado a descer aquela escadaria. Parava de tempos a tempos para contemplar a paisagem. Parava de tempos a tempos, pois olhar para o chão não me favorecia tão pouco as costas ou o pescoço. 

Chegou a minha vez. Calculei o tempo máximo de espera para alguém que tivesse o azar de o perder mal este iniciasse a sua descida. Ou a sua subida. Quatro minutos. Maios ou menos. Não é uma ciência exacta. Eu não sou exacto.

Chegado cá abaixo comecei a andar. Encontrei um tazo no chão. Estava estragado. Olhei para ele e continuei a andar. Ignorei-o como ignorei as cartas rasgadas daquela noite. 

Nove e meia. Cheguei ao meu destino. Não me atrasei. Nem um minuto. Estava atrasado quando acordei. Estava. Não estou. Não mais.

Era manhã quando acordei. O sol iluminava o meu quarto. Agora é tarde e já há muito que estou acordado.

Wednesday, September 29, 2010

Decisões

“Todos os dias somos confrontados com pequenas decisões, momentos que definem a direcção do nosso caminho.” Um telefonema, uma breve conversa e quatro anos volvidos, hoje é um dia diferente.

Os primeiros raios de sol abrem caminho pelas persianas, envolvendo o meu quarto aos poucos numa suava carícia de calor matinal. Acordo pouco antes da hora que programei no despertador. Enquanto aguardo que este desperte mergulho na fantasia de um dia diferente. Um dia como hoje.

A mesma hora, a mesma música. “Talvez esteja na hora de mudar a estação de rádio, já há uns tempos que não consigo apanhar o ‘Café da Manhã’”, penso. O mesmo banho, as mesmas roupas, o mesmo pequeno-almoço. As rotinas dão-me conforto, são seguras e estáveis. Aconteça o que acontecer posso sempre contar com elas.

Pego no meu telemóvel, nada de novo. Questiono-me se devia continuar a adiar a compra de um novo, ter a caixa de mensagens sempre cheia já começa a irritar. Saio de casa. A mesma porta, as mesmas chaves, o mesmo carro. Talvez não o mesmo, a cor é diferente. Mantém ainda o tom original, um verde-água sinónimo da sua experiência, marcado pelos longos quilómetros de estrada já percorridos. Hoje tem ainda mais alguns para fazer.

É bom estar de regresso a casa. Após estes últimos anos em constante viagem é bom ter um lugar para guardar as malas, dormir numa cama já bem familiar e fazer-me à estrada sem precisar de um mapa.

A viagem, essa, indispensável desde o meu regresso, é já ela mais um mero percurso rotineiro que, não fosse pela imprevisibilidade do trânsito, faria de olhos fechados.

Chego a Arouca pouco antes das nove e meia. Cidade diferente. Entro no café do costume onde a vejo a tomar o pequeno-almoço. Um croissant e uma meia de leite, também ela criatura de rotinas. “Se apenas esse leite fosse de soja podias ser perfeita”, digo-lhe com um sorriso. Ela limita-se a olhar-me de relance fingindo ignorar-me. Sento-me ao seu lado a aguardar a sua reacção. “De todos os cafés em todo o Mundo, tinhas que entrar no meu”, acaba por dizer. Beijamo-nos. Um beijo, também ele rotina, não fosse pela constante novidade de emoções que este momento desperta. Cada vez, único.

O seu nome é Sofia. Conheci-a há anos. Partilhávamos o mesmo sonho. Tomámos a mesma decisão, mas em cidades diferentes. Eu no Porto, ela em Lisboa. Lugar-comum nestas histórias. Nada de novo. Há dois anos, o destino, ou talvez uma mera coincidência entre duas pessoas que escolheram o mesmo ano para fazer Erasmus, ditou que nos encontrássemos em Madrid.

Conhecemo-nos quando já nos tínhamos esquecido um do outro. Conhecemo-nos no momento certo. “Assim estava escrito”, disse-lhe pouco após o nosso primeiro beijo. Ela sorriu. O mesmo sorriso.

“Vamos chegar atrasados”, disse. “Deixa-os esperar, a maioria deles prefere continuar na camioneta a dormir em vez de nos ouvir”, respondi. Ela concordou. Com alguma relutância deixámos aquele lugar.

Cabia a nós fazer a visita guiada ao Museu de Arouca. Uma breve lufada de ar fresco nos exaustivos dias de trabalho de campo. O grupo de hoje era uma turma de uma escola básica da região. A maioria das crianças distrai-se com facilidade e acaba por prestar pouca atenção às nossas apresentações. Acabamos por passar metade do tempo a avisar para não tocarem nas exibições. A minha única esperança é que, entre as poucas dezenas de alunos, haja pelo menos um interessado, sem medo de nos pôr à prova.

A turma de hoje parecia mais calma que as anteriores. Como era habitual gastámos algum tempo a explicar a origem das pedras parideiras e a mostrar-lhes alguns dos exemplares que pareciam maravilhar por breves instantes as suas jovens mentes. Enquanto ela os levava para a sala com os fósseis de trilobites, fui preparar o anfiteatro para a projecção de um pequeno documentário sobre os nossos estudos de campo.

Um rapaz franzino seguiu-me para colocar algumas questões. Já tinha reparado nele, era o que parecia mais atento do grupo. Perguntou-me sobre o que fazia, sobre o meu curso, também ele queria seguir as minhas pisadas. Sugeri alguns sites onde ele se podia informar e, antes de o levar para junto do resto da turma, disse: “Se o teu sonho for algo que te traga verdadeira felicidade, não desistas antes de o concretizares.”

Ao aperceber-me do forte impacto que teria na vida daquele rapaz, deixei-me envolver por um agradável sentimento de realização. São simples momentos como este que mudam o tom de qualquer dia.

Durante o filme, sentei-me ao lado da Sofia no fundo da sala. Contei-lhe a conversa que tive com aquele rapaz enquanto recordávamos alguns dos momentos passados durante as filmagens. “Não és um pouco novo para ser o mentor de alguém?” perguntou. “Talvez. Duvido que aquele rapaz se lembre de mim ou daquilo que lhe disse, mas quem sabe, talvez um dia ele nos venha a citar na sua tese de doutoramento.”

“A mim talvez, já tu, é outra história”, respondeu fixando o olhar na tela de projecção enquanto esboçava um expressivo gesto de contentamento. Fingi ignorá-la e imitei o seu recém-descoberto interesse pelo vídeo. Estava na parte em que explicava o processo da separação do fóssil da placa de xisto. Lembro-me bem daquela tarde. Cansados e cheios de pó após um longo dia de trabalho, acabámos por dar um mergulho numa das várias cataratas da Serra da Freita. Uma tarde diferente.

Passava pouco do meio-dia quando nos despedimos da turma. Almoçámos no centro, um pequeno restaurante com esplanada perto do convento. “Temos que aproveitar estes últimos dias de calor”, foi a desculpa que ela usou para me convencer a almoçar ali. Talvez um dia tenha que aprender a dizer não, mas hoje não é esse dia.

A mesma comida, o mesmo atendimento. “Estou a pensar levar umas fatias de pão-de-ló”, disse. “Prefiro o de Ovar”, respondeu. Diferente lugar, mas algumas coisas não mudam.

Chegámos ao centro museológico do Geoparque de Arouca pouco antes das duas da tarde. O resto da equipa já estava à nossa espera. A Sofia é do sul de Aveiro, desde pequena que teve uma forte paixão pela paleontologia. Terminada a licenciatura na Universidade de Lisboa, iniciou agora o doutoramento em parceria com a universidade de Madrid onde nos conhecemos. O estudo dela foca os vestígios paleozóicos do centro de Portugal.

É curioso como, embora tivéssemos passado grande parte das nossas vidas próximos um do outro, foi necessário ir para outro país de forma a, por fim, nos encontrarmos.

Passei as últimas semanas a ajudá-la com os trabalhos de campo. Já nos verões anteriores fizemos o mesmo em preparação das nossas teses. Daqui a um mês irei para a Lourinhã juntar-me ao Octávio Mateus e a mais um grupo de jovens investigadores. Também fui aceite no mesmo programa doutoral que ela, mas decidi seguir uma linha diferente de estudo. Durante os próximos meses irei assistir à recolha dos fósseis de uma nova espécie de saurópode similar ao Lourinhasaurus. Ela acabará por se juntar a mim, mas não podemos escapar a algumas semanas de separação. Dias como este são, assim, muito importantes.

Separámo-nos do resto do grupo em busca de novas áreas ainda por explorar. Recolhemos algumas amostras promissoras e preparávamo-nos já para regressar quando sugeri que fizéssemos uma pausa. Preparei um pequeno piquenique com alguns dos seus doces preferidos. Aguardámos durante horas, que na verdade não passaram de meros minutos, a fitar as belas paisagens da serra. Uma ligeira brisa acariciava o seu rosto. Com a sua face encostada sobre o meu peito, sentia as fortes batidas do meu coração, sinónimo de uma ligação mais profunda do que alguma vez podia ter imaginado.

Por um instante era como se o próprio tempo tivesse cedido à nossa vontade. O resto do mundo parecia não mais importar enquanto nos perdíamos um no outro.

Não tardou a regressarmos à realidade daquele dia. Regressámos para junto do grupo e continuámos o nosso trabalho. Ao fim do dia jantámos todos juntos novamente no centro da cidade. O mesmo jantar, pessoas diferentes.

Levei-a até casa. Pelo caminho mergulhámos num profundo oceano de milhares de conversas, todas elas a esconder simples palavras que ambos reconhecíamos no olhar um do outro. Ao despedir-me dela, fiquei para trás a observá-la enquanto se dirigia para a sua porta. Ela olhou para trás e sorriu. Senti uma forte necessidade de lhe dizer o que sentia, mas mesmo que as palavras ficassem por ser ditas, ela era capaz de as ler naquele simples gesto. Assim como eu as li no seu último relance antes de entrar.

Não era uma despedida. Amanhã voltaria a vê-la. Amanhã.

Regressei a casa. A mesma estrada, o mesmo carro, a mesma rotina. Deitei-me. A mesma noite, a mesma cama, um dia diferente, um pensamento diferente. Deixei-me adormecer, envolto na felicidade daquele dia, foi para ela o meu último pensamento. Mal podia esperar para acordar, para a ver, para voltar àquele lugar. Mal podia esperar para ver este sonho concretizado. Mal podia esperar.

O mesmo eu, um dia diferente, um mundo diferente, uma escolha diferente.

São simples os momentos que nos definem. Podem surgir por entre as linhas de um bom livro, na equação dos acordes de uma boa música, ou nas palavras de uma pessoa querida. Para mim foi um telefonema, dois minutos de conversa e um comum formulário.

Hoje, não é um dia diferente.

Saturday, July 22, 2006

Screaming into the Dark

Quantos dias teriam passado? Que luz era aquela que lhe encadeava os olhos? Alguém podia saber, mas ele já não tomava conta dos dias, nem tão pouco se importava com o que se passava à sua volta, mesmo que esta luz lhe doe-se como se as suas Íris estivessem a arder.

Hoje não seria um dia diferente, apenas mais um dia daqueles que vieram a seguir ao impensável. Mas ontem houve algo diferente, um simples telefonema, que não fosse pela persistência da chamada, nunca teria sido atendido. A voz do outro lado apanhou a sua atenção. Seria mais um palhaço a tentar enchê-lo de propaganda enganosa? 

Desta vez não. A voz era familiar, alguém do passado, alguém que tinha boas notícias, coisa rara por estas bandas. Apesar do cepticismo ele concordou em encontrar-se com a voz. Mal se apercebeu de que a luz era a de mais uma amanhã, a manhã do dia seguinte, do dia que tinha algo para fazer. Despertou, e preparou-se para ir ao seu encontro.

Ainda era de manhã quando se encontraram. Já tinha passado alguns anos desde a última vez que se viram, mas qualquer sentimentalismo, ou saudade, eram coisas que não podiam ser associadas a este momento. A voz pertencia ao seu filho.

“Vem. Descobri uma maneira de a salvar.”

“Foi para isso que me chamaste? Não tenho tempo para parvoíces.”

Virou as costas para se afastar, mas parou quando sentiu o seu braço a ser agarrado, puxando-o para trás.

“Se fossem parvoíces não te teria chamado!”

Ele viu nos seus olhos que ele dizia a verdade. 

Entraram ambos num armazém, ao fundo estava uma estrutura metalizada oval, com uma cadeira no centro, como uma espécie de cápsula.

“Entra lá dentro”, disse o seu filho.

“O que vai acontecer?”

“Consegui fazê-lo, posso levar-te ao momento antes...”

“‘Tás à espera que acredite que aquilo é capaz de contrariar as leis do tempo e do próprio destino?!”

“Do destino, só cabe a ti descobri-lo, mas do tempo sim. Agora, entras lá dentro ou vais continuar a desperdiçar o resto da tua vida?”

“Hmm... Sempre foste muito teimoso...”

Ele entrou na estranha cápsula, apesar de continuar céptico, uma pequena onda de esperança começava a formar-se dentro dele. Depois do seu filho accionar o mecanismo inicial, e de lhe explicar o que tinha de fazer, a cápsula fechou-se e ele adormeceu.

Alguém sabe o que é perder um verdadeiro amor? Talvez ninguém, mas ele sabia-o. Tudo aconteceu há uns meses atrás. Ou já seriam anos? Pouco importa, a data precisa perdeu-se nos fios do tempo. Numa fresca noite primaveril, passeavam pela floresta, nada havia a temer. Já o tinham feito muitas vezes, mas algo estava diferente, ele não se sentia ele, todo o seu poder tinha desaparecido. Sentia-se normal, mas estando ela ali, não havia tempo para pensar nisso. 

Aquela noite foi mesmo muito diferente. Da escuridão surgiram algumas sombras que sem aviso ou qualquer tipo de motivo decidiram atacar. Eles fugiram até onde puderam, mas as sombras encurralaram-nos. Ele tentou lutar, mas eram meras sombras, e ele sentia-se muito enfraquecido como nunca antes se tinha sentido. 

Três foram as flechas que trespassaram o peito da sua companheira, que ali jazia apenas com forças para um último olhar. Com isto o seu poder retornou, mil vezes aumentado pela raiva, e pela dor. Com facilidade derrotou as sombras, mas porque é que o seu poder se tinha dissipado? Porque tinha ela de morrer? Chegou o dia de obter a resposta a estas perguntas.

A cápsula finalmente chegou ao seu destino. Despertou, quando ela se abriu. Olhou para as horas, já faltava pouco tempo, tinha que se despachar. Estava na mesma floresta, exactamente como se lembrava. Decidiu antecipar-se e procurou o local onde eles tinham sido encurralados. Lá, esperou que eles chegassem. Um movimento chamou a sua atenção, pouco tempo depois. Lá estavam eles, e lá estavam as sombras. 

Concentrando todo o seu poder dirigiu um jacto de energia destruindo todas as sombras. Mas as flechas já tinham sido lançadas. Só havia uma coisa a fazer. O último sacrifício por quem ele amava. Colocou-se a si próprio em frente delas e assim foi ele atingido em vez dela. Logo ali desapareceu. O universo inteiro rodou na outra direcção. O destino e a vida de ambos voltou ao normal, como se o encontro das sombras nunca tivesse acontecido.

O sacrifício de alguém que morreu naquele dia, culminou na sua verdadeira morte. Era o que tinha a fazer. Ele podia já não existir, mas o seu outro Eu, que não passa dele mesmo, esse nunca terá que passar por aquilo. 

O seu filho talvez soubesse que era assim que as coisas se viriam a desenrolar, mas nem ele próprio guardou memórias do herói que o seu pai nunca foi. Esta amostra de verdadeiro amor ficou perdida no tempo. Esquecida para sempre, mas eternamente viva nas vidas que foram salvas naquele dia, e nos destinos que se alteraram.

Monday, April 17, 2006

Last Shred of Hope

Imagem DR
O bando já vagueava pelo deserto há semanas. Pouco alimento foram encontrando pelo caminho. Exaustos e famintos, aquele precioso oásis de salvação tardava em surgir no horizonte. Tudo começou com uma visão que o Deyn tinha tido semanas antes. "Em breve o céu cairá, e com ele o nosso império. Nada nos irá salvar, excepto o vale etéreo." Deyn era conhecido pelas suas visões que até agora sempre se tinham concretizado. Esta indicava-lhe o caminho para um vale perdido nas histórias do caminho. O único local onde podiam refugiar-se. Mal sabiam eles, que o tempo era cada vez mais escasso.

Deyn viajava com o seu irmão, Nick, a quem os outros olhavam como líder. Os outros eram apenas três, a Berry, o Vin e a May. Os cinco pertenciam a um grupo ainda maior, mas muitos não acreditaram na visão de Deyn, e optaram por não os seguir. 

Já não avistavam ninguém há dias, nenhuma presa se atravessou no seu caminho. Eles têm uma grande capacidade para se sustentarem por longos períodos sem alimento, mas o calor intenso e o cansaço da viagem, já fazem das suas. 

Ao longe, Nick avistou algo que se parecia com um pequeno lago. Pediu a Vin que fosse com ele investigar e disse aos outros para ficarem à espera. O pequeno lago, que de lago tinha pouco, ainda tinha alguns peixes. Apesar de não ter muita experiência, Nick ficou para trás para tentar pescar alguns, e enviou o Vin para trazer os outros de volta. 

Muito desastrosamente lá conseguiu pescar alguns peixes, e preparar o jantar para o resto do bando. Ali descansaram até ao anoitecer. O frio da noite obriga-os a mexerem-se. Sob o abrigo da noite, fazem melhor caminho. Protegidos daquele tórrido sol, que os atrasa constantemente. Mas a noite pode esconder muitos perigos. Nunca se sabe quando algo maior que nós nos pode atacar. Nick esforça-se para manter o grupo junto, enquanto procura seguir o caminho, o mais cuidadosamente possível.

Os dias passavam. O fim cada vez mais próximo, e o seu destino continuava a parecer estar tão longe. Já eram capazes de avistar os picos que rodeavam o vale. Atravessá-los será difícil, se não mesmo impossível, mas por enquanto têm outras preocupações. Na noite anterior avistaram alguns Tarbos. Nick receia que eles também os tenham avistado a eles. A noite poderá trazer problemas. 

O bando continua unido, mas o cansaço e o medo de uma morte dolorosa abate os seus espíritos. Nick, faz tudo para os conseguir moralizar. "Já falta pouco, percorremos este caminho todo, não vamos desistir agora." Era isto que eles viam no seu olhar, e no seu apoio. Com ele tinham a certeza que chegariam ao seu destino.

O Vale em si, era um mero mito, contado de geração em geração. Um local de refúgio. Intocável. Estagnado no tempo. Mas a verdade é que existia mesmo, apenas nunca houve motivo para lá chegar, nunca, até à visão de Deyn.

Deyn acordou sobressaltado, era Berry, estava na altura de eles partirem. Era difícil de dizer ao certo aquilo que havia entre Deyn e Berry, uma espécie de ligação, que a fez confiar nele e nas suas visões desde o início. Deyn encontrava conforto nela. Berry era a sua réstia de esperança neste mundo que parecia tê-la perdido. 

Os dois juntaram-se ao resto do bando e seguiram caminho. Alguns quilómetros à frente, Nick parou de andar, disse a Deyn e Vin que ficassem com ele, Berry e May esconderam-se por detrás de uns arbustos. Nick tinha "tropeçado" numa pegada de um Tarbos. Eles estavam perto, podia ser perigoso seguir em frente, mas ainda muito mais seria se ficassem por ali. 

Podiam dar a volta na tentativa de os despistar, mas isso iria atrasá-los pelo menos meio-dia, e o tempo escasseava a uma velocidade que eles nem imaginavam. Nick não tinha outra opção, era preciso agir. O grupo continuou em frente, tomando todas as cautelas possíveis. Mas nem o mais cuidadoso dos seres era capaz de prever o que iria acontecer. 

Do nada, dois Tarbos surgiram pelo flanco do grupo. Os cinco juntaram-se o mais que puderam, tentando procurar uma oportunidade para fugirem. Os dois Tarbos circundavam-nos. Podia ser difícil, mas estes dois não iriam ter vida fácil, pensou Nick para si próprio. O grupo estava assustado, poucas forças lhes restavam. 

Nick atirou-se a um dos Tarbos, apanhando-o desprevenido. Deyn e Vin tentaram tratar do outro, mas o Tarbos derrubou o Vin. Deyn distrai-o e faz com que ele o persiga. Deyn é mais ágil e mais rápido, mas quando parecia que ia conseguir escapar, tropeçou numa rocha e caiu atrapalhadamente no chão. 

O Tarbos alcança-o e prepara-se para investir o golpe final. Deyn vê a sua vida a passar em frente dos seus olhos, esta era uma visão menos dolorosa que as anteriores. As várias imagens da Berry faziam-no esquecer o terrível destino que o esperava. Quando se apercebe que o Tarbos estava a demorar o seu tempo. Ao abrir os olhos vê uma cena muito pior que um pesadelo, o Tarbos perseguia a Berry que tinha vindo em seu socorro. 

Enfurecido com a situação, Deyn corre atrás do Tarbos alcançando-o e pregando-lhe uma rasteira. Este cai estatelado no chão. Para a sorte dos dois, este Tarbos não se irá levantar tão cedo. Mais à frente, May ajuda o Nick a afugentar o outro Tarbos. Esta não seria uma refeição fácil, e com a queda do seu companheiro, não valia a pena gastar mais energia.

Após esta aventura, à qual ninguém sabia como conseguiu escapar vivo e inteiro, os cinco juntaram-se em desespero. Caminhavam há semanas, estavam famintos e não conseguiram encontrar o vale. Até que May chama a atenção dos outros para um pequeno riacho que penetrava nas montanhas à sua frente. Nick achou que o deviam seguir. Seguiram o riacho, que se tornou num rio, cujas margens se alargavam à medida que o percorriam. 

Os dias passavam e este rio parecia não ter fim, até que uma noite, a escuridão do horizonte iluminou-se. No céu, tal como um mensageiro divino, uma estrela luzia mais do que as outras, quase tanto como a Lua. Foi pelo espanto dos outros que Deyn reparou no que essa estrela iluminava. À sua frente estava uma queda de água, que desaguava num vale luxuriante. Igual àquele descrito na sua visão. Os cinco juntaram-se em alegria. Finalmente encontraram a terra prometida. Um refúgio para se protegerem do fim dos tempos, da queda do seu império.

Essa estrela era um asteróide com mais de dez quilómetros de diâmetro, que caiu no outro lado do mundo. A sua queda, conjugada com uma série de eventos, escureceram a Terra e provocaram a morte de mais de 70% das espécies. 

Foi assim que chegou ao fim o reinado dos Dinossauros, mas não para todos. Os cinco Deynonychus e os demais refugiados do vale, sobreviveram. A sua história, perdida no tear do tempo, juntamente com eles, e a localização desse vale, continua a ser contada nesse local longínquo, onde o tempo parou. E onde Nick, Deyn, Vin, Berry e May puderam gozar os últimos anos da sua existência.

Saturday, March 25, 2006

Shouting in the Nothingness

Imagem DR
Era de manhã. Não havia antes, nem necessidade de o tratar como antes. O Sol já ia alto, bem acima das nuvens. Tão alto que cá em baixo, apenas o cinzento da luz ofusca se reflectia no ar carregado do horizonte.

Mais um dia nublado. O início de uma Primavera normal, como sempre foi. Nenhum antes para sentir falta de. Apenas um dia como todos os outros. Mas, como todos os dias normais, este não seria escrito se não fosse algo mais do que apenas isso. Com nada em particular para fazer, parto para o sítio do costume, onde nada em particular se iria passar. Não num dia tão normal como este.

Dava-me como concretizado, ao conseguir encontrar alegria num dia cinzento. Passando assim a pertencer a um grupo restrito, daqueles que são capazes de o fazer.

Ao subir as escadas, nada para além da normalidade. Normalidade de degraus. Incontáveis. Permanentes e passados. Mantêm uma eterna indiferença rochosa perante tudo aquilo que por eles passa.

Continuo até ao topo. Caminho para aquele local, onde lá estarei, para me banhar pela normalidade que absorve este dia. Que dias normais, esses passados, subindo e descendo degraus, caminhando por passeios e estradas, sobre as quais outros passavam. Outros que seguiam as suas rotinas, procurando o mesmo propósito de uma busca pela normalidade.

Tudo isto ainda não era um antes, se alguma vez viria a ser. Era aquilo que era. Era um agora. Um agora que não precisava de um antes. Que não sonhava em ser um antes, e que não precisava de um antes.

Todos estes caminhos assim continuam, até ao dia em que os agoras do presente se tornem nos antes do passado. Antes que perseguem estes presentes, não como ofertas, mas como aquilo que são: Lembranças de um antes que já foi um agora.

Caminhos férreos, acidentes, realidades, anjos, terraços, perigos, bicicletas e viagens, sempre viagens. E assim, todos os antes culminam num agora. Um agora incapaz de ser aceite. Um agora que não passa disso. Apenas um agora em toda a sua normalidade. Um agora que não teme nem anseia por um antes.

Porque tem algo de ser salvo? Porque tem algo que desaparecer? Porque tem algo de ser relembrado?

Perguntas vãs, com respostas sem sentido. Nem o nada sabe aquilo que é, ou que não é. Hoje é um dia normal. O dia da eterna e simplista nebulização, que nos acinzenta o caminho para a alegria.

Saturday, February 18, 2006

Aulas e mais aulas, e mais aulas...

Era uma vez, em tempos que já lá vão, D. João II estava sentado na sua corte, à direita de seu pai. Nessa manhã, Jesus tinha-lhe visitado com uma intimidação avisando que o ia processar por violação de direitos de autor.

Tal pouco afectou el-Rei, que até ficou maravilhado com a performance musical, que o Messias lhe presenciou. “Digna de Broadway”, pensou ele. Seja lá o que isso for, quando for inventado, pois ainda não o foi. Mas el-Rei lá sabe que o será.

Jesus não foi a sua única visita. Após o cenário ter sido levantado, Cristóvão Colombo veio pedir-lhe fundos para viajar em busca da Índia e um adiantamento do seu registo de nacionalidade Portuguesa, pois a Selecção tinha um compromisso muito importante com a futura selecção Brasileira, e ele era preciso para os escravizar antes que o Ronaldinho conseguisse chegar à área.

D. João II não gostou da conversa e mandou-o ir dar uma volta ao bilhar grande, seja lá isso o que for. Colombo partiu assim para as docas onde viu Vasco da Gama na conversa com o Infante D. Henrique. Planeavam uma maneira de jogar ao berlinde com cubos de vidro em vez de esferas. Colombo achou a ideia de génio, mas a ideia de ir para a Índia de Nau, ainda lhe agradou mais.

Estando os dados lançados, Vasco da Gama partiu para a Índia e Colombo pediu um táxi para o seguir, pagando 15 euros, seja lá o que isso for, pela boleia das docas até ao mar. Lá construiu uma Nau com os pinheiros do pinhal de Leiria, que estavam, convenientemente, por ali ao acaso. Colombo terminou a construção da Nau e partiu no encalço de Vasco da Gama, que já lhe levava algumas milhas de avanço. Dias foram-se passando, até que num dia de nevoeiro denso, onde anos mais tarde D. Sebastião se irá perder, Colombo optou por virar à direita acabando por atingir uma terra desconhecida, chamada Brasil, que este pensou ser a Índia. Mal chegou, entrou em contacto com os locais.

“Então isto é que é a Índia?”

“Não cara! Isto é o Brasil, a Índia fica pra aquele lado.”

“Hmm... Quem sois vós?”

“Eu sou o Sexta-Feira, não sei o que faço aqui. Este cara aqui é o Mindão, foi ele que subjectivamente me ensinou a falar assim, sabe...”

Deparado com uma figura que não se parecia com nada, Colombo assustou-se e voltou para Portugal, entrando no Estádio da Luz para pedir ao Luís Filipe Vieira que abanasse as orelhas e que pedisse ao Bin Laden para lhe emprestar antraz para ele poder conquistar a terra desconhecida chamada Brasil. Mas, pobre coitado, Colombo teve que se contentar com umas gripes e uns sarampos.

Do outro lado do mundo, Vasco da Gama já tinha chegado a Moçambique, onde contratou o Eusébio para o Sporting, e teve uma longa conversa com Sexta-Feira (que tinha apanhado um voo da TAP no dia anterior) sobre o seu novo jogo de berlindes. Sexta-Feira achou a ideia interessante, e até lhe indicou o resto do caminho que Vasco da Gama ainda tinha que fazer para chegar à Índia.

Despedindo-se de Sexta-Feira, e com o Eusébio a bordo, Vasco da Gama partiu em busca da Índia, passando o caminho todo a falar do encontro com o Mostrengo, e da maneira com que ele conseguiu convencer o mesmo a baixar as suas expectativas. Aproveitando um momento de maior emoção para lhe espetar com a pontinha da Nau no olho, fazendo-o contorcer em dor, enquanto Vasco, Jesus, os sete anões, Camões, e a miúda do gás, fugiam para a segurança do mar aberto.

Passaram-se meses e até mesmo dias. Quando Vasco da Gama finalmente encontrou a Índia, lá estava o Sexta-Feira à beira de uma placa que dizia Bem-Vindo em 7 línguas diferentes. Vasco da Gama cumprimentou o amigo e foi ao Modelo mais próximo comprar especiarias e umas pilhas AAA para o comando da televisão de el-Rei.

Apesar da oferta de Sexta-Feira lhes dar boleia no seu tapete mágico, Vasco e os 12 magníficos seguiram viagem de regresso a Portugal, onde, à chegada, lembraram-se que se tinham esquecido do passe internacional do Eusébio, obrigando este a ficar 462 anos à espera na alfândega. Tragédia que acabou com ele a tornar-se no novo reforço do Benfica.

E foi assim que naquele dia Sexta-Feira inventou o jogo do berlinde, aparando os cubos e transformando-os em esferas.

Fim.

Friday, February 03, 2006

Baby, can you dig your man?

Foto DR
E desta forma o mundo acabou.

Por vezes gostava de me sentir como o Larry Underwood, a caminhar num mundo destroçado, coberto por desertos e mortos. Acompanhado apenas por um pontual oásis de vida humana, avistado de quando em vez.

A verdade é que não saberia como sobreviver. Neste mundo, não foram poucas as vezes que me senti desta forma, mas, pelo menos, sempre tinha comida fresca na mesa. Um carro atestado e com a revisão em dia. E pouca, ou nenhuma, necessidade de temer os estranhos que passavam pela rua. Apenas em tempos de escassez podemos ver o quanto especiais verdadeiramente somos.

De qualquer das maneiras, à mínima ferida mais grave, ver-me-ia condenado. Será que valeria a pena ser um dos poucos sobreviventes do apocalipse? Talvez finalmente encontrasse assim alguma paz. Talvez a morte não seja assim tão má. Não sei. Também não sei se faria como os outros, e iria em busca de vida humana. Já hoje pouco a procuro, embora, por vezes, deseje alguma da sua diversidade.

A verdade é que nestas coisas não existe verdade. São meras hipóteses que, pouco provavelmente, algum dia virão a ter uma oportunidade de serem provadas, ou contra-argumentadas.

Estar só no meio de uma multidão pode ser dos mais antigos clichés que nos vemos obrigados a ouvir, mas, contudo, não deixa de continuar a acontecer.

Estarei realmente só? Não, mas gosto de pensar que sim. Estranho sentimento de self-pity que provavelmente nunca irei compreender.

A verdade é que não existe nenhuma verdade, nem tão pouco uma mentira. As coisas são como são. Eu sou como sou. Não estou só, mas anseio por me sentir assim. Só quero aquilo que não posso ter, e só preciso daquilo que não quero. Um paradoxo ambulante. O meu dogma. A minha cruz. Estas palavras já não fazem sentido, nem tão pouco era essa a minha intenção.

Acredito que seria um sobrevivente. Não me imagino morto, logo serei imortal. Tal pensamento egocêntrico talvez nunca venha a ser provado. Mas irei comprovar algo, alguma vez? Vou continuar a celebrar aquilo que nunca irei ter?

Perguntas lançadas no ar, que sem resposta vão permanecer. Isto de ser eu não tem muita piada, ou talvez as coisas não sejam assim. A verdade é que nem sei o que estou a escrever, nem o porquê de o estar a fazer.

Escrever sem sentido faz-te dizer coisas que podem ficar confusas. Mas todo o caos tem a sua ordem. Não é preciso procurar muito para a encontrar. Ela é tão explícita como a beleza interior.

Não espero por interpretações, nem por possíveis intervenções. Essas simplesmente não existem. Isto é o que é. Eu sou o que sou. E por enquanto ficarei por aqui. Tanto para dizer, tão pouco tempo para o fazer, tão poucas razões também.

Friday, January 20, 2006

Sonhos de Sofá

Foto DR
“Aconselho-te a apressares-te. Esta velocidade pode ser imprópria para cardíacos.” Ariel, não, não era este o seu nome, mas bem que podia ser. A tal senhora de branco ascendia no céu até pairar em pleno ar. Que movimento indescritível, e cheio de tão tremenda beleza. Beleza essa coberta por uma sombra.

Ele estava lá em baixo, controlava-a contra a sua vontade. Ela aponta a sua flecha para os inocentes. Eles nada lhe fizeram, nem a ela, nem a ele. Mas é a ele que Ariel obedece. "Tem que ser agora", diz-lhe sem mexer os lábios.

Ela está relutante, incapaz. Porque tem ela de dar tal destino aos inocentes? Porque deve tamanha pureza e serenidade, ser sujeita a esta opressão? A tamanha demanda pelo inaceitável? Pelo perverso?

Ariel, identifica o seu alvo e puxa a flecha para trás. "Isso. É agora!", grita ele. Sim, é agora, ela sabe que não é capaz. Não disto. Mas existe algo que ela ainda pode fazer: Pôr um fim à sua opressão.

Ela direcciona a sua mira para o coração daquele ser perverso. Com alvo no centro da sua perversidade, a traição abate-se sobre os céus, e a seta trespassa-o. Ariel nem pestaneja, há mais vidas a salvar.

O Eu que, de tantas adversidades, e problemas impossíveis, vê-se mais uma vez numa situação de perigo irrealista e surreal. "Porque raio estas coisas só acontecem a mim?! Que sonho tive eu tão desastroso que acabou com o universo de outrem?".

A caminho do calor reconfortante daquela que um dia o salvou de si mesmo, a sua bicicleta pára. Também os grandes heróis são amigos do ambiente. À sua frente, algo que desde criança ele aprendeu a familiarizar e a conhecer melhor que ninguém.

Este não tem quaisquer exageros cinematográficos. Doze metros da cabeça à ponta da cauda. Dentes e mais dentes. Braços curtinhos com apenas dois dedos, mas de cor negra. Muito negra.

O T-Rex olhava-o. Nada havia a fazer. Não era capaz de pedalar mais depressa. Este seria o fim. Não existiam realidades generosas, ou salvamentos de última hora. Não desta vez. Desta vez, era o fim.

Mas Ariel não podia deixar que assim fosse. Afinal tudo isto era obra do seu mestre que agora jaz morto numa poça da sua própria malvadez. Do céu deixa cair o salvador. Não aquele que se esperava, mas outro da mesma espécie. Mais pequeno, decerto. As apostas não estão do seu lado.

A clareza do bem é translúcida na sua pele, e na sua leve penugem branca. O T-Rex maior recupera os sentidos. Atordoado após testemunhar um da sua espécie a cair dos céus. Ignorando Ariel, e o nosso herói, ele olha nos olhos do recém-chegado.

Antes de fugir desenfreadamente estrada fora. Este Eu seria capaz de jurar que o tinha visto a sorrir.

A luta começou. Ariel é incapaz de a ver. O seu tempo não pode ser preenchido por estas coisas mundanas. Ela cometeu o único acto imperdoável, mesmo que apenas o bem possa surgir da sua traição.

Terá agora que responder perante um poder maior. Um poder que transcende qualquer um, até inclusive, os poderes do Eu que morreu em seu desespero.

A luta interminável entre dois membros de uma espécie extinta continua a ser disputada por baixo do olhar de Ariel. Ao nosso Eu apenas resta o reconforto de algo a que pode chamar de casa.

Este é o seu mundo. Este é o seu dom. Esta é a sua maldição.