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Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta
Ricardo Reis, in “Odes”
Na Primavera de 2013 estava ainda a habituar-me ao clima e às particularidades da Covilhã. Sendo esta uma terra de extremos, de graus negativos e neve no Inverno, a calor sufocante no Verão, a Primavera e o Outono são duas estações negligenciáveis, que duram pouco mais de uma ou duas semanas. Depois de um Abril especialmente chuvoso, chegou um Maio seco e bipolar, com temperaturas altas e muito Sol durante o dia, e um frio de gelar os ossos durante a noite.
Nunca me dei bem com estas diferenças de temperatura, especialmente em ambientes mais secos. Um dia, enquanto estava a trabalhar, comecei a sangrar pelo nariz. Embora isto não tenha voltado a acontecer desde então, na altura o episódio forçou-me a cortar com uma das minhas mais velhas tradições. Substituí o meu lenço característico por lenços de papel. Esta medida devia apenas ser temporária enquanto me habituava ao clima seco da Covilhã.
Os meses foram passando, e continuei a usar lenços de papel. Até então apenas os usava quando me encontrava constipado, tendo o meu lenço de pano um papel preponderante na minha rotina de objectos que acompanham as minhas viagens ao longo dos dias.
Há uns meses atrás, durante uma ligeira crise de identidade tentei voltar a usar os meus lenços. Este curto regresso não durou mais que algumas semanas. Entretanto constipei-me e não voltei a usá-los desde então. Confesso que durante o curto período em que os voltei a usar senti-me mais confortável, e deixei-me envolver por um velho sentimento de segurança. De algo que tão bem conhecia e que durante tanto tempo fez parte de mim.
Certas tradições, rotinas, ou costumes que guardamos em nós, ajudam a construir a nossa identidade, e transformam-se, aos poucos, em âncoras que ajudam a nos manter firmes na realidade do momento, e que nos relembram quem somos e de onde viemos.
Tal como os lenços, existem outros aspectos da minha personalidade que mudei ao longo dos anos, ora forçado pelas circunstâncias de certos episódios, ora apenas porque sim. Em tempos não conseguia sair de casa sem o meu relógio, e embora tivesse também recentemente voltado a usar um, tal tentativa durou pouco tempo. Já não como com os talheres nas mãos opostas, nem ponho açúcar nos iogurtes. Há pouco tempo voltei a fazer sandes com o meu almoço da cantina, mas durante vários meses deixei de o fazer.
Algumas coisas vão e vêm, outras desaparecem para sempre, ou por tempo indeterminado. São estas pequenas coisas, estes pequenos costumes, que fazem de mim quem eu sou. São coisas que me distinguem dos outros, não de forma propositada, mas sim vítimas da minha educação, ou por mero capricho.
No outro dia, enquanto assistia à estreia da segunda temporada da série The Flash, vi um dos personagens oferecer um lenço a uma amiga dele que estava a chorar. A reacção dela foi um breve sorriso seguido de, “andas com um lenço? Tens o quê, 80 anos?” Não tenho 80 anos, e já não ando com um lenço. Não tenho nenhum motivo que me faça não andar com um lenço. Mesmo hoje guardo alguns no meu novo apartamento, embora já não os use há meses.
Talvez seja a preguiça a falar, talvez já não faça sentido usá-los. Não sei. Apenas sei que, por vezes, sinto que parte de mim está em falta. Que não estou completo. Contudo, seja o que for essa parte que agora encontro ausente, sinto-a ao meu alcance, longe, mas sempre disponível a reagrupar-se com os restantes pormenores que fazem de mim quem eu sou.
A nossa personalidade é definida pela soma de todas as pequenas partes que fazem de nós um todo, único, especial, inimitável, ímpar e singular.
Por enquanto continuo a usar lenços de papel. Talvez um dia assim não seja. Talvez. Um dia.
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