Ao contrário da maioria dos desenhos-animados mais populares da minha infância, como Dragon Ball, Pokémon, Widget, The World Watcher ou Denver, The Last Dinosaur, Sailor Moon sempre ocupou um papel secundário. Talvez por ser um anime mais direccionado para o público feminino, contudo, sempre que possível não perdia um único episódio. Como todos os rapazes do meu tempo, dizia que via Sailor Moon por causa das transformações onde as navegantes (a partir deste ponto vou referir-me a elas por Sailor Senshi) apareciam completamente despidas.
Por causa da sua posição secundária na minha programação de TV, nunca segui de forma aprofundada a sua história, nem tão pouco, prestei muita atenção às diferenças entre as temporadas. Era, na altura, mais um anime a seguir o formato dos Power Rangers, em que um monstro atacava uma cidade, elas transformavam-se para o derrotar e tudo acabava bem.
Os anos foram-se passando, volta e meia apanhava um episódio no Canal Panda e perdia uma boa meia-hora a levar com a dobragem irritante da versão portuguesa. Inúmeros erros e falas sem sentido perdidas na tradução faziam-me desistir ao fim de um ou dois episódios. Decidi então pesquisar mais sobre esta série. Encontrei diversos blogues dedicados a este anime, e algumas wikis. Em quase todos, os seus autores queixavam-se da censura inquisitória imposta pela versão norte-americana de Sailor Moon. Estes retractavam uma visão muito mais negra e emocionalmente bem-desenvolvida presente na versão original que simplesmente tinha sido removida ou obscurecida da versão traduzida. Ao longo do tempo intriguei-me sobre como seria a versão original em japonês. Seria assim tão bem construída? Teria Sailor Moon sofrido de uma opressão ao estilo do Estado Novo tão grande que a sua mensagem tinha sido distorcida ao ponto de perder tudo aquilo que fazia deste anime uma obra que merecia a adoração de milhões de fãs a nível mundial? A única forma de responder a esta questão seria ver a versão original.
Os 200 episódios que compunham as cinco temporadas de Sailor Moon foram, para mim, o principal obstáculo para sentar-me em frente da televisão e rever esta série. Mas um dia, há cerca de dois meses, decidi, finalmente, arranjar os episódios, incluindo a temporada que nunca foi transmitida nos E.U.A., e comecei a vê-los sempre que tinha algum tempo livre. Ontem acabei de ver o último episódio e posso afirmar que as minhas suspeitas se confirmaram. Sailor Moon sofreu tanto com a censura e erros de tradução que o Mundo perdeu uma das melhores histórias de amor e, até mesmo, um dos melhores animes dos últimos vinte anos.
Serenity e Endymion: Um amor que atravessa os milénios
A primeira temporada apresenta-nos duas faces. Dividida em três momentos, repartidos por 46 episódios, a temporada inaugural começa por apresentar Usagi Tsukino, a protagonista da série. Uma jovem de 14 anos, que odeia estudar, passa a vida a comer doces e a chegar atrasada às aulas. Além de ser desastrada e de estar constantemente a chorar. Um dia uma gata, chamada Luna, aparece e transforma-a em Sailor Moon. Sim, um dos principais erros da versão portuguesa da série é tratar a Luna como um gato, em vez de uma gata, mas isto até é o menos. De seguida são apresentadas as restantes Sailor Senshi, numa primeira fase apenas a Sailor Mercury e a Sailor Mars, com uma misteriosa Sailor V a surgir constantemente no background da história. Após o primeiro inimigo ser derrotado, é apresentada a Sailor Jupiter e a Sailor V aparece para revelar a sua verdadeira identidade como Sailor Venus, trazendo consigo o gato (sim, gato e não gata como na versão portuguesa), Artemis. Pelo meio presenciamos um dos inimigos ter uma mudança de coração e apaixonar-se por uma amiga de Usagi, passando para o lado do bem, apenas para ser morto pelos seus antigos colegas. Sim, morto. Ao contrário da imagem que a versão traduzida tentava passar, há um lado realista e obscuro de Sailor Moon na versão original que nos foi negado pela censura.
Uma das situações que achei mais bem-feita durante a primeira temporada é a relação entre Usagi e Mamoru Chiba (a identidade do Mascarado, ou Tuxedo Kamen na versão original). Uma relação de amor/ódio entre as suas personas reais e um profundo apreço e paixão entre os seus alter-egos. Durante a maior parte da primeira temporada a própria lealdade do Tuxedo Kamen é posta em causa, com a Luna a questionar constantemente se ele não seria apenas mais um inimigo.
A primeira temporada também nos apresenta uma justificação para tudo aquilo que se estava a passar. Desde o surgimento dos inimigos, até ao facto de serem estas pessoas a terem o fardo de carregar com estes poderes. Tudo isto se deveu a uma guerra milenar entre o Reino da Lua e o Dark Kingdom que resultou no sacrifício da Rainha Serenity, mãe de Sailor Moon, para pôr fim ao conflito e dar uma nova vida no futuro à sua filha, Sailor Moon, e aos restantes intervenientes, nomeadamente as Sailor Senshi, e o Príncipe do Reino Dourado da Terra, Endymion (incarnação de Mamoru Chiba).
Lost in Translation
Um dos grandes problemas que a série sofreu através da censura foi a ambiguidade sexual de alguns personagens e a própria orientação sexual dos mesmos. Desde raparigas transformadas em rapazes, e vice-versa, para evitar que as crianças ocidentais tivessem que lidar com relações entre lésbicas e homossexuais, a erros de tradução que confundiram profundamente os fãs que ao serem apresentados com as transformações e com certas afirmações por parte de outros personagens, simplesmente ficavam com o cérebro a andar às voltas quanto à natureza de determinados personagens.
O primeiro contacto com este nível de censura acontece no final da primeira temporada. A relação homossexual entre dois inimigos é ocultada ao simplesmente cortarem as cenas em que estes falavam mais intimamente. Numa cena, um desses inimigos sacrifica-se para estar junto do seu parceiro já morto, jurando o seu eterno amor pelo camarada caído. Contudo, tal deve ter surpreendido os espectadores ocidentais visto terem-lhes sido negados os principais momentos da relação entre estes dois.
Neste aspecto, Sailor Moon, apesar de ter estreado em 1992, mantém-se bastante actual. São retratadas todo o tipo de relações. Somos presenteados com personagens heterossexuais, homossexuais, bissexuais e transsexuais. E todos eles são aceites pela sociedade onde vivem. Contudo, a censura dos anos 90 achou que o mundo ocidental não estava preparado para lidar com isto e optou por ocultar a verdadeira natureza de alguns personagens. Natureza essa que deu uma muito maior profundidade à série e que infelizmente, mais uma vez, ficou perdida na tradução.
A morte das Sailor Senshi
No final desta primeira temporada, o Príncipe Endymion é manipulado de forma a passar-se para o lado do mal, mas mesmo assim continua a proteger a Sailor Moon e as restantes Sailor Senshi. Esta nunca deixa de acreditar nele e luta até ao fim para o fazer reverter à sua identidade original.
Mesmo no final, que para mim está ao nível dos melhores momentos de Dragon Ball ou Naruto, quer no nível de acção, quer na profundidade emocional e moral apresentada, somos vítimas da censura. Na versão original, Usagi tem que lidar com a morte das suas amigas, uma por uma, todas as Sailor Senshi morrem para a proteger e para fazer com que ela chegue à base dos inimigos para os derrotar e repor a paz. Sozinha, magoada e psicologicamente abatida, Usagi consegue na mesma chegar à fortaleza do Dark Kingdom e enfrentar a Rainha Beryl. Pelo meio, o Príncipe Endymion tenta impedi-la, mas através do seu amor e de uma caixinha de música em formato de estrela que ela lhe tinha oferecido noutra vida, Usagi consegue reavivar a memória de Mamoru. Este vira-se contra a rainha e ele próprio acaba morto.
No momento mais baixo de sempre para este personagem, Sailor Moon reúne todas as suas energias e com a ajuda das almas das suas amigas, consegue, por fim, derrotar a Rainha Beryl e trazer a paz para a Terra. No processo, Usagi Tsukino pede um desejo para que todos possam viver uma vida normal como se nada disto tivesse acontecido. Aqui, sinto que os fãs são de certa forma traídos, visto que toda a história regressa ao início como se nada se tivesse passado. As Sailor Senshi e Mamoru Chiba estão novamente vivos e apenas a Luna e o Artemis mantêm as memórias das verdadeiras identidades destes personagens.
Imagino que isto tenha acontecido para assegurar qualquer eventualidade da série ser ou não renovada para uma segunda temporada. O que acabou por acontecer pelo menos mais quatro vezes.
Neo Queen Serenity e o Século XXX
Uma das coisas que mais gostei no início da segunda temporada foi como lidaram com a recuperação da memória da Sailor Moon. Usagi, depois de derrotar o novo inimigo, desespera e lamenta o facto de não poder continuar a ser uma rapariga normal. Evitando, durante o máximo de tempo possível recorrer às restantes Sailor Senshi para que pelo menos estas pudessem ter a vida que lhe foi negada. Infelizmente, nenhuma delas teve essa sorte, acabando todas por aceitar o seu destino e abraçarem o fardo de defender a Terra.
Na segunda temporada somos apresentados com o início da relação entre Usagi Tsukino e Mamoru Chiba. Início e repentina separação, após o aparecimento de Chibiusa, uma rapariga do futuro que mais tarde se descobre ser a filha de Usagi e Mamoru no futuro. Futuro esse que estranhamente apenas se passa no século XXX. Pelos vistos estas personagens vão conseguir viver durante mais de mil anos mantendo a sua juventude. Chibiusa regressa ao passado para recuperar o Silver Crystal para salvar a sua mãe, Neo Queen Serenity, e a futura cidade de Crystal Tokyo dos inimigos, Black Moon. Estes acompanham-na até ao passado com o mesmo objectivo. No fim, com muito sacrifício e com Chibiusa a ser manipulada para o lado do mal, o bem acaba por prevalecer e quer a Tokyo do presente, quer a Crystal Tokyo do futuro são salvas.
Usagi e Mamoru reatam a sua relação e Chibiusa regressa ao futuro. Nesta temporada a primeira Outer Senshi é apresentada, Sailor Pluto (hoje em dia provavelmente teriam muita dificuldade em explicar porque é que Plutão, que já não é considerado um planeta, teve direito a uma Sailor Senshi, enquanto Ceres e outros planetas-anões foram ignorados, enfim, sinais dos tempos). Sailor Pluto é a responsável por guardar as portas do espaço e do tempo e, juntamente com os restantes navegantes dos planetas do Sistema Solar exterior, compõe as Outer Senshi, responsáveis por proteger a Terra contra ameaças extraterrestres.
Monty Python, I mean, Sailor Moon and the Senshi of the Holy Grail
Na terceira temporada, as Sailor Senshi vão em busca do Santo Graal. Sim, até Sailor Moon cai neste cliché. As Sailor Uranus e Sailor Neptune são apresentadas. Inicialmente como inimigas, no fim, como aliados. As duas apresentam a primeira profunda relação lésbica da série que é mais uma vez posta de lado na tradução, visto que a Sailor Uranus é transformada em rapaz na versão ocidental. Algo muito mal feito, visto que quando “ele” se transforma apresenta corpo de mulher e veste-se com o uniforme colegial típico das Sailor Senshi.
Do sacrifício pessoal das Sailors Uranus e Neptune, dispostas a dar a sua vida para completar a sua missão, à exclusão da Sailor Saturn por esta representar o planeta do desespero e da destruição, esta temporada é de longe a melhor e aquela mais repleta de acção. Os últimos episódios são impossíveis de largar com toda a acção envolta na descoberta do Messias e da ameaça do Pharaoh 90, força maligna e destrutiva que tenta conquistar a Terra. Apenas o sacrifício da Sailor Saturn, que assume o lado do bem depois da Sailor Moon a convencer de que o seu coração estava a ser controlado por uma força maligna, consegue impedir que o nosso mundo seja destruído.
Sailor Moon salva a Sailor Saturn, mas esta reverte para a sua infância e transforma-se numa bebé, visto que toda a sua energia vital foi usada para destruir o Pharaoh 90. Sailor Uranus e Sailor Neptune juram proteger a nova vida da Sailor Saturn e abandonam as restantes Sailor Senshi com o sentido de dever cumprido.
Pegasus e o Dead Circus
Já a quarta temporada apresenta-nos novos inimigos e um novo aliado. Pegasus. O cavalo alado surge para dar novos poderes às Sailor Senshi, escondendo-se dentro do coração de Chibiusa. Pegasus era na verdade Helios, um sacerdote do antigo Reino Dourado da Terra responsável por proteger o Golden Crystal dos novos inimigos, Dead Circus, liderados pela rainha Nehellenia, antiga rival da Rainha Serenity, que invejava a felicidade do Reino da Lua.
Esta temporada serviu de certa forma como uma temporada de transição, onde as Sailor Senshi ganharam novos poderes e a relação entre Usagi, Mamoru e Chibiusa foi-se solidificando. Sendo, provavelmente, a temporada com mais fillers, não deixou muitas saudades, mas vale pela acção dos últimos episódios, por alguns momentos chave ao longo do seu story arc e pelos momentos de descontracção de que esta série, ao fim de quatro anos, bem precisava. Para aqueles que quiserem ver esta temporada com maior pormenor, basta ligarem o Canal Panda a partir da meia-noite.
Sailor Galaxia, Three Lights e a batalha final
A quinta e última temporada é a malfadada temporada que nunca foi transmitida nos E.U.A. É de longe uma das melhores temporadas desta série, pecando apenas pelos cerca de 15 episódios de fillers que ocupam quase metade dos 34 episódios que compõem o quinto e último capítulo deste anime.
O início é simplesmente fantástico. Pegando no final da quarta temporada, Nehellenia regressa e desperta a Sailor Saturn. As nove Sailor Senshi, mais a Sailor Chibi Moon (transformação de Chibiusa), unem forças para a derrotar após esta capturar Mamoru Chiba e ameaçar matá-lo se a Sailor Moon não se render. Pelo caminho, as Sailor Senshi sofrem mas conseguem vencer. A própria Sailor Moon descobre um novo poder e uma nova transformação, surgindo assim a Eternal Sailor Moon.
Derrotada Nehellenia, um novo inimigo surge, Sailor Galaxia. Uma antiga Sailor Senshi controlada por uma força maligna chamada Chaos que ambiciona coleccionar todas as Star Seeds da Via Láctea. Três novos aliados surgem, as Sailor Starlights, que estranhamente são rapazes antes de se transformarem. Vivendo sob a identidade de Three Lights, uma banda pop, e com o objectivo de encontrarem a sua princesa que fugiu para a Terra. As Starlights rapidamente fazem amizade com Usagi Tsukino, sendo que uma delas chega mesmo a apaixonar-se por ela. Seiya, identidade da Sailor Star Fighter, apaixona-se por Usagi que nesta temporada tem que lidar com a ida de Mamoru para os E.U.A., que nunca chega a ir, desaparecendo sem deixar rasto.
A relação entre Seiya e Usagi intensifica-se, sem nunca vermos o amor de Seiya ser correspondido. Embora a maioria dos fillers me terem custado bastante a ver, ontem à noite cometi o erro de ver o primeiro episódio do último acto. Sailor Moon tem destas coisas, por mais irritantes ou desinteressantes que os fillers possam parecer, chega a um ponto, quando a história começa a andar para a frente em que não conseguimos mais deixar de ver. Apenas me deitei já passava das três da manhã, quando finalmente acabei de ver o último episódio.
Neste arco final da série, Usagi descobre que Mamoru Chiba não a tinha abandonado, mas que na verdade tinha sido morto logo no início pela Sailor Galaxia para que esta pudesse roubar a sua Star Seed. Todas as Sailor Senshi, à excepção das Sailor Starlights, sacrificam-se e no final e apenas a perseverança e a vontade de Sailor Moon em acreditar que existe bem dentro do coração de todas as pessoas, conseguiu libertar a Sailor Galaxia do controlo de Chaos. Acabando assim por limpar todo o mal causado por este inimigo.
As Sailor Senshi e Mamoru Chiba regressam à vida, repostas as suas Star Seeds e Usagi volta a reunir-se com os seus amigos. A princesa das Sailor Starlights também regressa e estas decidem voltar ao seu planeta. No fim, somos presenteados com um momento romântico entre Usagi e Mamoru, sob o luar prateado da Lua Cheia a cobrir quase na totalidade o céu de Tokyo. Um final feliz, sem loose ends e com todas as histórias concluídas, deixando a possibilidade de uma continuação num futuro próximo.
Adeus Sailor Moon, até ao teu regresso!
Continuação essa que foi confirmada no ano passado. Este verão, vamos ser presenteados com uma nova temporada de Sailor Moon. Existem vários rumores sobre se esta nova temporada vai ser uma continuação da quinta, – o que em princípio tornaria difícil comercializá-la no ocidente, visto que a quinta temporada nunca foi transmitida em vários países – ou se vai ser um novo recomeço para a série, como fizeram com o Dragon Ball Kai. Existe ainda a possibilidade da nova série ser completamente diferente de Sailor Moon, pegando em novos personagens. É esperar para ver.
Podem estar a pensar sobre o porquê da quinta temporada de Sailor Moon nunca ter sido transmitida nos E.U.A. Não existe nenhuma versão oficial que justifique o sucedido. Apenas o rumor de que a autora da série, Naoko Takeushi, simplesmente “passou-se” com a censura e decidiu proibir que a série continuasse a ser transmitida internacionalmente. Já o facto de o sexo das Sailor Starlights ter sido alterado da Manga para o Anime, enfureceu-a ao ponto de praticamente desistir da série. Se bem que, a meu ver, esta alteração foi benéfica pois permitiu fortalecer a relação entre Usagi e Seiya.
Embora Sailor Moon tenha um número excessivo de fillers, os finais e os momentos chave de cada uma das temporadas fazem deste anime um dos melhores que alguma vez vi. Uma profunda história de amor, repleta de acção e de sacrifício pessoal com uma boa dose de comédia e entretenimento pelo meio. Aconselho a todos aqueles que gostam do género Magical Girl ou que acompanharam minimamente a série durante a sua infância, a reverem-na na sua versão original e a voltarem-se a apaixonar pelo mundo fantástico de Sailor Moon.
Deixo-vos com a cena final da quinta temporada de Sailor Moon:
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