Wednesday, October 21, 2015

October 21st 2015

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Of course it's erased! (…) It means your future hasn't been written yet. No one's has. Your future is whatever you make it, so make it a good one.

Dr. Emmett "Doc" Brown, Back to the Future III

Trinta anos após a estreia do primeiro filme, enfim chegou a icónica data do Regresso ao Futuro II, que marca a chegada de Marty McFly ao futuro. Esse longínquo futuro de 1985, imaginado com carros voadores, fusão a frio movida a lixo doméstico, filmes 3D, hoverboards, roupa ajustável ao corpo e faxes. Uma mescla de ficção científica ainda distante da realidade da versão actual de 2015, com algum saudosismo típico da década de 1980.

Olhando à distância de uma das mais aclamadas trilogias da História do Cinema, por vezes pensamos que pouco, ou quase nada, mudou nos últimos trinta, vinte e seis, ou vinte e cinco anos. Não temos carros voadores, ainda não somos capazes de viajar no tempo, existem filmes 3D e nunca foram tão populares, os videojogos são cada vez mais imersivos, têm melhores gráficos, mas ainda nos “obrigam” a usar as mãos. Não temos hoverboards, pelo menos, não como as do filme, e quanto a roupa ajustável, espero que não a tardem a inventar. Ser uma daquelas pessoas que está sempre algures perdida entre um M e um L, não é nada agradável, especialmente quando a disparidade entre tamanhos é tão vincada de loja para loja.

Back to the Future é uma das minhas trilogias preferidas. Daria prioridade a uma maratona de Back to the Future contra uma de Star Wars, Lord of the Rings, e até mesmo de Jurassic Park. Talvez apenas o Em Busca do Vale Encantado, mesmo com as suas doze, e em breve, treze sequelas, fosse capaz de tirar o lugar às aventuras de Doc e Marty McFly na minha lista de preferência para umas boas horas passadas em frente à TV.

Sou um fã incondicional de Regresso ao Futuro. Lembro-me de o ver na televisão quando era pequeno, de sonhar com carros voadores e com viagens no tempo. Não cheguei a apanhar muitos episódios da série de animação, e tenho apenas uma vaga ideia de como era. Desenhada ao estilo de Denver, the Last Dinosaur, Widget, the World Watcher e Captain Planet and the Planeteers, a série animada de Back to the Future também se centrava em temas que ainda hoje são actuais. Era uma série com um profundo aspecto vocacional e educativo, ao ensinar as crianças sobre Ciência e História, e ao preocupar-se com assuntos que ainda hoje preocupam a humanidade, como a poluição, as alterações climáticas e a protecção do planeta, assim como o nosso futuro como espécie e como habitantes da Terra.

Contudo, precisei ainda de esperar mais alguns anos para voltar a entrar em contacto com esta trilogia. Já estava na faculdade quando a TVI começou a passar os filmes ao sábado. Durante três semanas acompanhei-os como se os visse pela primeira vez. Nesse mesmo mês encontrei a caixa em DVD da trilogia na Fnac e comprei-a. Na altura custou-me cerca de 30 euros, um pequeno investimento para um incontável número de tardes passadas a ver cada pormenor e cada especial que esta colecção trazia.

Além da edição em DVD, possuo também o set da Lego Ideas com o famoso DeLorean, e as minifiguras de Doc Brown e Marty McFly, e as edições especiais Funko POP! de ambas as personagens, com o Marty acompanhado pela máquina do tempo, e a sua inesquecível matrícula “Out of Time”.

Talvez hoje numa linha do tempo alternativa, Marty já esteja em Hill Valley a tentar salvar o seu filho, mas, este 2015, não é o mesmo 2015 que a mente de Robert Zemeckis nos deu a conhecer. Para os verdadeiros fãs é uma data que merece ser celebrada, para os restantes é um dia como qualquer outro com uma pequena curiosidade partilhada nas redes sociais e na comunicação social. Para mim, é o dia que marca a publicação número 300, dos quase 10 anos de vida deste blogue.

E que melhor tema para a celebrar que a chegada de Marty McFly ao futuro?

Foram trezentos artigos entre crónicas, contos, poemas, citações, fotos, vídeos, e uma boa dose de nonsense constante. Quando comecei a escrever para este blogue, pouco mais de um ano depois de me aventurar pela blogosfera, não tinha nenhum plano em mente. Apenas queria escrever e ter um espaço onde pudesse publicar aquilo que tinha para dizer.

Quase dez anos depois, salvo raras excepções, continuo a escrever apenas para mim próprio. Este é um espaço onde a minha voz é ouvida, onde os meus pensamentos são livres para correr sem restrições, onde o mais íntimo dos meus momentos de introspecção tem o seu tempo de antena.

O No Sense of Reason é o projecto ao qual mais tempo dediquei em toda a minha vida. Sempre tentei publicar pelo menos um artigo por mês e escrever cerca de trinta artigos por ano. É pouco para um blogue que queira ser popular e lido por milhares de pessoas. Mas não escrevo para que me leiam, ou para fazer algum dinheiro com isto. Escrevo apenas porque sim. Porque tenho uma voz, e porque quero que ela seja ouvida. Mesmo que o único ouvinte seja um futuro Eu em busca de respostas nas entrelinhas dos seus pensamentos passados.

Estes foram apenas os primeiros trezentos capítulos de uma longa história ainda por escrever. Pois tal como Doc Brown diz na conclusão da saga de Back to the Future, o futuro ainda não foi escrito. Está apenas ao alcance da nossa imaginação, do nosso esforço, e da nossa ambição.

“Where we’re going, we don’t need roads.”

Friday, October 09, 2015

Esquecidos Costumes

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Para ser grande, sê inteiro: nada 
       Teu exagera ou exclui. 
Sê todo em cada coisa. 
       Põe quanto és 
No mínimo que fazes. 
       Assim em cada lago a lua toda 
Brilha, porque alta
Ricardo Reis, in “Odes”

Na Primavera de 2013 estava ainda a habituar-me ao clima e às particularidades da Covilhã. Sendo esta uma terra de extremos, de graus negativos e neve no Inverno, a calor sufocante no Verão, a Primavera e o Outono são duas estações negligenciáveis, que duram pouco mais de uma ou duas semanas. Depois de um Abril especialmente chuvoso, chegou um Maio seco e bipolar, com temperaturas altas e muito Sol durante o dia, e um frio de gelar os ossos durante a noite.

Nunca me dei bem com estas diferenças de temperatura, especialmente em ambientes mais secos. Um dia, enquanto estava a trabalhar, comecei a sangrar pelo nariz. Embora isto não tenha voltado a acontecer desde então, na altura o episódio forçou-me a cortar com uma das minhas mais velhas tradições. Substituí o meu lenço característico por lenços de papel. Esta medida devia apenas ser temporária enquanto me habituava ao clima seco da Covilhã.

Os meses foram passando, e continuei a usar lenços de papel. Até então apenas os usava quando me encontrava constipado, tendo o meu lenço de pano um papel preponderante na minha rotina de objectos que acompanham as minhas viagens ao longo dos dias.

Há uns meses atrás, durante uma ligeira crise de identidade tentei voltar a usar os meus lenços. Este curto regresso não durou mais que algumas semanas. Entretanto constipei-me e não voltei a usá-los desde então. Confesso que durante o curto período em que os voltei a usar senti-me mais confortável, e deixei-me envolver por um velho sentimento de segurança. De algo que tão bem conhecia e que durante tanto tempo fez parte de mim.

Certas tradições, rotinas, ou costumes que guardamos em nós, ajudam a construir a nossa identidade, e transformam-se, aos poucos, em âncoras que ajudam a nos manter firmes na realidade do momento, e que nos relembram quem somos e de onde viemos.

Tal como os lenços, existem outros aspectos da minha personalidade que mudei ao longo dos anos, ora forçado pelas circunstâncias de certos episódios, ora apenas porque sim. Em tempos não conseguia sair de casa sem o meu relógio, e embora tivesse também recentemente voltado a usar um, tal tentativa durou pouco tempo. Já não como com os talheres nas mãos opostas, nem ponho açúcar nos iogurtes. Há pouco tempo voltei a fazer sandes com o meu almoço da cantina, mas durante vários meses deixei de o fazer.

Algumas coisas vão e vêm, outras desaparecem para sempre, ou por tempo indeterminado. São estas pequenas coisas, estes pequenos costumes, que fazem de mim quem eu sou. São coisas que me distinguem dos outros, não de forma propositada, mas sim vítimas da minha educação, ou por mero capricho.

No outro dia, enquanto assistia à estreia da segunda temporada da série The Flash, vi um dos personagens oferecer um lenço a uma amiga dele que estava a chorar. A reacção dela foi um breve sorriso seguido de, “andas com um lenço? Tens o quê, 80 anos?” Não tenho 80 anos, e já não ando com um lenço. Não tenho nenhum motivo que me faça não andar com um lenço. Mesmo hoje guardo alguns no meu novo apartamento, embora já não os use há meses.

Talvez seja a preguiça a falar, talvez já não faça sentido usá-los. Não sei. Apenas sei que, por vezes, sinto que parte de mim está em falta. Que não estou completo. Contudo, seja o que for essa parte que agora encontro ausente, sinto-a ao meu alcance, longe, mas sempre disponível a reagrupar-se com os restantes pormenores que fazem de mim quem eu sou.

A nossa personalidade é definida pela soma de todas as pequenas partes que fazem de nós um todo, único, especial, inimitável, ímpar e singular.

Por enquanto continuo a usar lenços de papel. Talvez um dia assim não seja. Talvez. Um dia.

Wednesday, October 07, 2015

Desnecessárias Edições Limitadas

Jurassic World Edição Limitada
“Ó não! A minha vida não vai ficar completa enquanto eu não tiver isso.” Já por diversas vezes sugeri que o Paulo criasse um canal, ou uma espécie de podcast, para que ele pudesse partilhar com o Mundo a sua inigualável forma de narrar eventos da sua vida, e de sumarizar filmes, séries, livros ou jogos. Ele consegue explicar uma receita, ou comentar um evento qualquer de uma forma cómica e exageradamente expressiva, capazes de tornar o episódio mais banal num momento deveras hilariante. Por mais que tente descrever este seu talento, ele é algo que precisa de ser vivido e presenciado em primeira-mão.

Na última sexta-feira, estávamos no Sal & Pimenta, como de costume – este ano ainda não saímos uma única vez no Furadouro, o Verão já passou e as noites já se sentem frias, parece-me que o Paralelo é cada vez mais apenas um velho pedaço de memorabilia de um passado distante dos nossos encontros – e entre uma conversa sobre filmes, perguntei ao Luís se ele já tinha visto a edição especial em Blu-ray do Jurassic World com duas miniaturas do T-Rex e do Indominus Rex em pose de combate. A resposta do Paulo foi imediata, aliás, quase nem me deixou acabar de falar, como sempre, nem deu tempo para o Luís me responder. “Ó não! A minha vida não vai ficar completa enquanto eu não tiver isso” – isto dito naquele seu jeito particular, e num profundo tom de sarcasmo que rivaliza com qualquer sketch dos Monty Python.

Ontem, enquanto explorava a minha necessidade de controlo, encontrei-me a pensar nesse momento. Na verdade, raro é o dia em que não me questiono sobre esta sua exaltação momentânea, desde que ela aconteceu. Tentei arranjar forma de a incluir na minha última crónica, mas simplesmente não era o espaço adequado. “Ó não! A minha vida não vai ficar completa enquanto eu não tiver isso”, é uma expressão que quando lida fora do contexto, pode dar aso a duas possibilidades. A primeira, ou melhor, aquela que é mais natural para mim, pois não só presenciei o momento, como este foi dirigido directamente à minha pessoa, é a mesma que o Paulo quis expressar. Ironia, sarcasmo, chamem-lhe o que quiserem, é uma frase que desvaloriza o objecto e o remete para o profundo abismo das coisas que ignoramos à primeira vista.

A segunda possibilidade é uma interpretação mais literal, de desejo imediato por esse mesmo objecto. Que, confesso, foi a minha reacção quando descobri que este Blu-ray existia. Desde pequeno que sou fã de Jurassic Park. Ainda antes do Em Busca do Vale Encantado me ter desperto a paixão por Dinossauros, e o meu sonho de ser Paleontólogo, já o Jurassic Park ocupava um lugar especial na minha infância e no meu imaginário. Sonhava com Dinossauros, em viajar no tempo, em poder tocá-los e viver entre eles. Em tê-los como animais de estimação, em dar o nome a uma nova espécie, ou em simplesmente admirar a sua beleza e a sua capacidade de nos espantarem com o seu Universo alienígena de um Mundo Perdido na História da Terra.

Ao longo da minha infância coleccionei diversas réplicas de Dinossauros. Tenho o Jurassic Park, o Mundo Perdido e o terceiro filme em DVD e em Blu-ray. Guardo e exponho religiosamente os meus brinquedos do Mundo Perdido, ora no sótão, ora no meu quarto. Mesmo hoje, mal saiu o Jurassic World, comecei a colecionar os seus respectivos sets da Lego, que agora ocupam o espaço dedicado aos meus velhos sets que tantos anos aguardaram por uma nova oportunidade de serem recuperados.

Portanto, não seria de admirar que mal descobri essa edição especial, o meu primeiro pensamento foi, “tenho que ter isto”. O preço é muito pouco convidativo, 80 dólares na Amazon. É uma edição limitada que ainda não está disponível em Portugal, se é que alguma vez chegará a estar. Para já, no site da Fnac não existe qualquer informação sobre esta edição especial, e mesmo o Play.com não a tem à venda.

Posso simplesmente esperar que esta tenha um preço mais aliciante, que surja alguma promoção, ou então aguardar por alguma pechincha de última hora no eBay. Posso até mesmo ignorá-la e comprar apenas o Blu-ray normal, cujo preço não tardará a rondar os dez euros, mais coisa, menos coisa.

Posso fazer isto, e normalmente sempre o faço. Mesmo com o último álbum dos New Order, a minha banda preferida, decidi aguardar para que este tenha um preço mais acessível antes de o comprar. Sei ser paciente, e sei aguardar pelo momento certo para fazer uma compra. Embora hajam algumas excepções a esta regra, não me considero um comprador compulsivo. Contudo, são incontáveis as coisas “desnecessárias” que comprei ao longo dos anos.

Uso a palavra “desnecessárias” entre aspas, pois quando gostamos de algo e podemos tê-lo, seja ele um livro, um CD, um vinil, um DVD, um brinquedo, um pedaço de memorabilia de um filme, ou de uma série, uma peça de roupa que raramente iremos usar, ou outro objecto qualquer, não há mal nenhum em considerar esse investimento como um bem necessário. Construímos pequenos pedaços da nossa identidade com aquilo que compramos, e com aquilo que decidimos mostrar ao Mundo, por mais infantil, abstracto, ou inútil que esse objecto seja.

Sou um coleccionador nato. Não colecciono apenas uma coisa, nem tenho uma obsessão por algo como postais, moedas, selos ou pacotes de açúcar. Colecciono recordações, pedaços da minha infância, da minha vida, das coisas que gosto e que me fazem feliz. Por isso tenho ainda bem estimados todos os meus Power Rangers, Dinossauros, Legos, Cartas Pokémon, Fósseis, Minerais, T-Shirts de Concertos, CDs, DVDs, Vinis, Livros, Cromos, Brinquedos de Caixas de Cereais, Carros de Colecção, Jogos de Tabuleiro, Puzzles, Canecas, Bilhetes de Cinema, Postais, Fotografias, enfim, uma longa lista tão extensa, como interminável.

Algumas destas coisas estão melhor organizadas que outras. Algumas tiveram direito a expositores ou a lugares privilegiados em estantes e outros móveis da minha casa, outros estão guardados em gavetas e caixas, mas todos eles estão ao alcance da minha memória, e facilmente consigo localizá-los sem perder muito tempo.

Não são bens de primeira necessidade. Não. Consigo viver sem eles. A minha vida não seria menos completa se não os tivesse, e a minha carteira estaria bem mais cheia. Mas cada um deles é um momento material das minhas recordações. Cada objecto conta uma história. Cada objecto é único. Uma parte de um todo bem maior que compõe quem eu sou.

Uma vez, em casa do Luís, ele contou-me que gostava muito do seu quarto e que às vezes ficava apenas deitado a olhar para as suas coisas e a pensar como estas diziam tanto sobre ele. O mesmo acontece comigo, não tanto no meu quarto, por falta de espaço, mas no salão do meu sótão. Em poucos minutos, uma pessoa que observe esses dois espaços com o mínimo de atenção é capaz de ficar a conhecer mais sobre mim do que se passasse longas horas em conversa comigo. Especialmente se o Paulo estivesse lá para me interromper constantemente.

A minha vida é bastante completa sem a edição limitada em Blu-ray do Jurassic World. E nada mudará em mim se algum dia a vier a comprar. Contudo, confesso que a quero ter. Apenas porque sim. Porque o T-Rex está bem desenhado, porque a caixa é bonita, e porque o Indominus Rex, embora não me agrade, também se conjuga muito bem com todo o ensemble desta edição limitada.

Todas as coisas que tenho comprei-as porque podia. Não passei fome para as ter. Não deixei de viajar para as ter. Não aceitei um emprego fora da minha área para as ter. E fora aquelas que recebi quando ainda era criança, ou como prenda de aniversário, comprei-as todas com o meu dinheiro. Hoje podia ter um pé-de-meia interessante, talvez, mas não me arrependo do dinheiro que gastei em nenhuma delas. E também, sejamos sinceros, tudo aquilo junto não representa sequer metade daquilo que gasto num ano em renda ou em comida.

No Mundo do Digital eu gosto de ter os meus Livros, os meus CDs, os meus Vinis, os meus DVDs e os meus Blu-rays. Quero ter essa colecção física para um dia a poder partilhar com quem me é próximo e até mesmo, quem sabe, com os meus filhos. Da mesma forma que hoje ouço os vinis do meu pai, e leio os seus livros, um dia quero que os meus filhos façam o mesmo. E ao contrário de tantas histórias de adultos saudosistas pelos seus há muito perdidos brinquedos de infância, desejo preservar os meus para a posteridade, apenas porque sim. O meu pequeno museu pessoal das coisas que mais prazer me deram ao longo da minha vida.

A minha vida é completa não pelas coisas que tenho, mas sim pelas pessoas que amo e que me amam de volta. Tudo o resto são apenas recordações, diários físicos de uma linguagem universal, fácil de decifrar pelo mais atento dos observadores.

Quero muito ter essa edição especial. Mesmo sem ela, a minha vida já é completa. Mas quero muito tê-la. Apenas porque sim.

Tuesday, October 06, 2015

Os Legos da Minha Infância, ou Como Preciso de Perder o Controlo

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I could live a little better with the myths and the lies, when the darkness broke in, I just broke down and cried. I could live a little in a wider line, when the change is gone, when the urge is gone. To lose control. When here we come.

She’s Lost Control, Joy Division

Em Janeiro de 2013 estava desempregado. O meu contrato com a RTP tinha terminado a 4 de Dezembro, e as duas entrevistas de emprego a que tinha ido nesse mesmo mês resultaram em duas respostas negativas. Estava em casa em pleno Inverno, no hiato natural das séries que na altura seguia, já com pouco ou nada para fazer. Rapidamente gastei os poucos livros que ainda tinha para ler. Entretinha-me a escrever no meu blogue, e a pesquisar por novas oportunidades de emprego, às quais me candidatava religiosamente todas as semanas.

A minha semana era monótona, passada em frente ao PC em busca de alguma inspiração. Apenas as saídas ao fim-de-semana, o ocasional Quiz em Oliveira de Azeméis e as aulas semanais de Russo interrompiam essa minha rotina de tédio. Foi então que, ao fim de mais de dez anos, decidi arrumar os meus brinquedos velhos que se encontravam dispersos pelo coberto que habita a ponta do meu quintal. Anos de exposição a humidade, mudanças de temperatura, pó, insectos, e o ocasional gato vadio, deixaram as suas marcas em alguns deles, especialmente nos meus carros telecomandados que, após tanto tempo dificilmente algum dia voltariam a funcionar.

Tudo isto começou porque, uma noite, lembrei-me de ir salvar o meu velho jogo de tabuleiro do Space Jam, que lá se encontrava, por algum milagre, ainda intacto. Talvez não se lembrem mas este jogo foi uma oferta do Jornal de Notícias nos anos 90. Continha miniaturas das personagens do filme, e cartões de dominó com ilustrações dessas mesmas personagens. Após o recuperar, decidi usar o meu tempo livre para arrumar os restantes brinquedos. Os carros telecomandados foram limpos e guardados numa mala antiga que ainda hoje lá se encontra, assim como os meus velhos brinquedos de bebé, e inúmeras pás, raquetes, baldes e formas de plástico com as quais brincava na praia.

Entre esta variedade de velhas recordações, encontravam-se os meus legos, desde os Duplo, a pequenos sets que colecionei nos finais dos anos 90, a meros blocos coloridos que faziam ainda parte do único balde vermelho da Lego que tive na minha infância. Os blocos e os Duplo guardei-os nos respectivos baldes, cujas tampas já há muito desapareceram. Muitos deles tinham marcas de pó e de humidade, e alguns até guardavam algumas teias de aranha, entranhadas por entre os seus orifícios, que muito me custaram a limpar.

Voltei a minha atenção para os sets. Diversas minifiguras e peças customizadas, mas nenhuma caixa, nem tão pouco um único livro de instruções. Depois de ter terminado a reorganização, limpeza e arrumação dos restantes brinquedos, ataquei o Google em busca de uma base de dados que incluísse as instruções para os sets que se encontravam ali, unidos, mas sem qualquer coesão entre as diversas peças. Felizmente não tive que pesquisar muito até encontrar o Brick Factory. Um site que mais parece um fóssil vivo dos primórdios da internet. Um design adequado tendo em conta a nostalgia inerente à minha pesquisa. Este site inclui as instruções para a grande maioria dos sets da Lego, e permite que os utilizadores não só pesquisem pelo nome, ou pelo número de série, mas também pela data em que o set foi lançado.

Como não me recordava do nome de nenhum dos meus sets, e como o número de série há muito se tinha perdido quando as respectivas caixas foram deitadas fora, comecei a pesquisar por ano, desde os meados dos anos 80 até aos finais da década de 90. Foi uma tarefa árdua que me custou algumas horas e umas boas tardes de frustração mediada por pequenos momentos de sucesso. Numa semana encontrei as instruções para todos os sets que tinha.

Desses 36 sets, para minha grande surpresa, a maioria deles estavam ainda completos. Fora uma ou outra mazela, facilmente corrigida com um pano húmido, consegui recuperá-los e expô-los no meu quarto com o orgulho de um artefacto arqueológico descoberto num canto do meu quintal. Contudo, ainda havia uma questão que me mantinha acordado durante a noite. O que fazer com os sets incompletos? Podia simplesmente guardá-los numa caixa e ignorá-los. Lamentar a minha negligência para com a minha memorabilia de infância e seguir em frente. Mas assim não o fiz. Não faz parte da minha natureza.

Durante as semanas seguintes procurar as peças que faltavam transformou-se numa espécie de obsessão. Revirei a minha casa de pernas para o ar, abri cada caixa de brinquedos, daqueles que tiveram a sorte de se resguardarem nos arrumos do sótão da casa dos meus pais e que não sofreram o mesmo destino dos restantes que ficaram no quintal à mercê da misericórdia dos elementos. Essa tarefa, até um certo ponto hercúlea e desgastante, teve os seus frutos. Consegui completar alguns dos sets e arrumei de uma forma mais organizada os meus jogos de tabuleiro, carros de colecção, e outros brinquedos que se amontoavam pelos arrumos do sótão.

Mas ainda havia alguns que teimavam em permanecer incompletos. Estes eram os sets mais antigos, aqueles que me ofereceram quando ainda não tinha idade para me lembrar deles, quanto mais para ter o cuidado necessário para os preservar. Procurei em várias lojas, no site da Lego, em fóruns, até que enfim descobri o Bricklink. Uma hub de lojas e utilizadores especializada na venda de legos por set ou à peça. Neste site através do número de série de um set, é possível ver o seu inventário e procurar por utilizadores que vendam a peça específica que desejas. Rapidamente descobri as peças que precisava e, embora estivesse desempregado, não tivesse qualquer proposta de emprego, e já contasse com alguns meses sem vencimento, comprei-as. Gastei cerca de cinquenta euros nesses meses para completar os sets que durante anos ficaram esquecidos num coberto ao fundo do meu quintal.

Podia ter esperado para arranjar emprego, podia simplesmente tê-los ignorado, mas assim não o fiz. Sim, cinquenta euros é pouco, facilmente gastas mais numa ida ao supermercado, em roupa, num concerto, ou num jantar ao nível de um Oxalá, mas para um desempregado, mesmo alguém com a cultura de poupar o máximo que podia, cinquenta euros é dinheiro a mais para gastar em algo tão banal como velhas peças de Lego. Mas assim fiz. Completei-os, não os conseguia ver assim, como já disse, não faz parte da minha natureza.

Assim que os completei, expu-los junto dos restantes no meu quarto e esqueci-me deles. A aventura tinha terminado. Os meus Legos estavam completos e os meus brinquedos estavam arrumados. A ansiedade de controlo sobre um pequeno pedaço da minha esquecida infância, estava enfim saciada.

Ontem, enquanto fazia Insanity e me questionava sobre a possibilidade de me ver forçado a prolongar o meu dia de descanso por causa dos compromissos que vou ter nos próximos fins-de-semana, encontrei-me a pensar sobre esta minha necessidade de controlo e rapidamente associei-a a este episódio com os meus velhos Legos.

Este pequeno período de redescoberta da minha paixão por estes blocos de plástico é a analogia perfeita para a minha necessidade de controlo em todos os aspectos da minha vida. E pela ansiedade que me assola sempre que esse controlo está fora das minhas mãos e longe do meu alcance.

Se uma colecção está incompleta, se um brinquedo está partido, ou se um Lego está perdido, posso sempre comprá-lo. Procurar no eBay, na Amazon, no OLX, em feiras de antiguidades, em fóruns, e em conversa com outros aficionados. Se um livro ficar por ler, encontro tempo para o terminar. Se hoje não posso fazer Insanity, acordo mais cedo, deito-me mais tarde, salto o próximo dia de descanso, ou simplesmente continuo amanhã no mesmo ponto como se hoje não tivesse acontecido. Se preciso de ter uma boa nota num teste, estudo. Se preciso de emprego, preparo bem a entrevista. Se quero impressionar o meu chefe, chego mais cedo, trabalho o dobro, mostro proatividade, e dou o meu máximo. Contudo, esta fórmula não funciona em todos os aspectos da tua vida.

No amor, na amizade, e até mesmo com a tua família, não dependes apenas de ti. Podes ser simpático, podes saber ouvir, podes ser prestável e estar sempre lá quando alguém precisa de ti. Mas isto pode não ser suficiente. Mesmo que não tomes alguém por garantido, que te esforces por ser bom para alguém, que procures surpreender quem te rodeia com grandes acções, ou com pequenos gestos. No fim do dia, nunca estás dependente de ti próprio. Duas pessoas que no papel são perfeitas uma para outra, podem nunca se apaixonar, podem não conseguir manter uma conversa, ou até mesmo dispensar a companhia uma da outra.

Não existe uma fórmula matemática para o amor ou para a amizade. São eventos aleatórios que aproximam as pessoas, desejos incontroláveis que as mantêm juntas, e que podem tão facilmente também as separar. São dados lançados com um resultado incerto, uma aposta, um risco, um desafio com o qual temos que saber lidar, independentemente das suas consequências.

O mesmo acontece com a nossa família, uma lotaria genética e de circunstância que pode ou não ser algo com o qual nos identificamos. Tudo isto elementos completamente fora do nosso controlo. Não existem fóruns com as soluções para um coração partido, não existem sites com instruções para completar uma amizade, e não podes comprar uma nova infância no eBay.

Sou vítima de mim próprio. Da minha fértil imaginação. Da minha necessidade de controlo. Da ansiedade por um futuro inexistente, e da frustração por um passado presente. Não é fácil aceitar a perda de controlo. Não é fácil ignorar um Lego incompleto. Não para mim, não faz parte da minha natureza.

O controlo é uma obsessão. Um mal, por vezes útil, por vezes necessário, mas, na maior parte das vezes, não passa de um mal doentio. Um mal que te consome aos poucos. Uma chama que queima lentamente. Um travão incapacitante.

Jamais ignoraria os meus Legos, quer os velhos, quer aqueles que hoje colecciono, mas preciso de perder o controlo. Preciso de saber aceitar que quando perco uma peça, não preciso de a substituir, quer no imediato, ou até mesmo nunca. Alguns brinquedos ficam melhor guardados nas suas caixas, outros nas recordações que tão saudosamente guardamos. Nenhum Lego vale uma noite perdida. Nenhum Lego precisa do teu controlo. Nenhum Eu precisa do meu controlo.

Preciso de perder o controlo. Preciso de ignorar aquela peça incompleta. Preciso de perder o controlo. Preciso de esquecer o brinquedo partido. Preciso de perder o controlo. Preciso de perder o controlo.