Sistela, Foto: Adriano Cerqueira |
Todos os Verões há um fenómeno migratório que transforma o Norte e o Interior do país em uma amálgama de matrículas amarelas, memorabilia da selecção nacional de futebol, e trajes de um estilo que, no mínimo, podemos pensar como arrojado. Este fenómeno está tão enraizado na cultura destas regiões que as diversas vilas e aldeias que as povoam lhe dedicam extensos arraiais e romarias, sempre antecipando uma farta participação daqueles que trocam os seus habitats naturais nas planícies francesas, belgas e suíças, pela sua casa de Verão algures guardada em um canto de Portugal
Não é, inclusive, incomum que os dialectos próprios destas regiões sejam substituídos por um primo esquecido das línguas românticas que algures entre o português e o francês ficou perdido na tradução.
Há já quarenta anos que os locais se habituaram a receber estes migrantes, reservando assim, integralmente e sem marcação, o seu querido mês de Agosto para os deixar o mais confortáveis possível e para garantir que os seus carros alugados sejam exibidos dentro da sua comunidade como se fossem eles os seus donos.
Contudo, esta tradição tem os seus dias marcados. O prognóstico não é favorável e, sem qualquer dado empírico que o suporte, não acredito que a mesma sobreviva aos próximos vinte anos.
O tempo será o culpado por esta esperada extinção. O tempo e o próprio mote que motiva a periodicidade desta migração.
A geração que em tempos partiu para fugir à ditadura em busca de um novo emprego algures no centro da Europa há muito que deixou para trás a vivacidade da sua juventude. As novas gerações que entretanto nasceram já se encontram tão embrenhadas no tecido multicultural dos países que habitam que qualquer traço de portugalidade apenas ainda resiste na sua genética.
Poucos falam português, pelo menos não de forma fluente. As recordações que trazem dos seus Verões passados com os pais são de um Portugal de interior, pobre, aborrecido e parado no tempo.
Não exploraram o país que havia para lá das suas vilas. Não conheceram as pessoas que viviam fora dos muros construídos pelos seus vizinhos e pelos seus parentes. Vinham de carro e entravam em Portugal ora por Vilar Formoso, ora por Viana do Castelo.
Não conhecem Lisboa, não conhecem o Porto. Das restantes capitais de distrito, pouco ou nada sabem. Aqueles que visitaram o litoral fizeram-no fechados em tendas com churrascos à beira-mar, e pouco, ou nenhum, contacto com os locais.
O Portugal que eles conheceram é hoje apenas uma caricatura, uma imagem transmitida através das salas e dos quintais dos familiares que cá ficaram.
Podem até manter uma ou outra recordação de infância mas, para eles, a ideia de passar um Verão inteiro a visitar familiares e a saltar entre arraiais está muito longe de ser uma opção viável para as suas férias.
As novas gerações não têm uma língua quebrada entre fragmentos de outras duas. As novas gerações falam francês, alemão ou inglês. São gerações qualificadas. Integradas na sua comunidade. Gerações com vontade de viajar.
As suas férias não são passadas em Portugal, mas sim em Itália, na Grécia, no Vietname, na Tailândia, no Japão, na Austrália, nos EUA ou no México. Os seus fins-de-semana prolongados são divididos entre Paris, Berlim, Viena ou Amesterdão.
O quão mais integrados estiverem, menos verão esta migração a Portugal como um mal necessário. Enquanto os seus pais insistirem, vão continuar a regressar. Primeiro durante um mês, depois por duas semanas, uma semana, e enfim, talvez apenas um fim-de-semana lá para o Natal.
De anual, para de ano a ano, de quatro em quatro, para nunca. Talvez ouçam alguns amigos franceses a elogiar o país. A mostrar as fotos que tiraram no Porto, em Lisboa, no Algarve, nos Açores ou na Madeira. E talvez aí pensem em regressar. Não à terra. Não. Os familiares que aí habitam já não os conhecem, e os vizinhos há muito que se mudaram.
Quando regressarem vão chegar por um dos aeroportos. Vão visitar as nossas cidades, as nossas praias e um ou outro destino turístico. Vão ser turistas indistintos de outros quaisquer.
As vilas do nosso interior vão enfim ver-se livres das infindáveis matrículas amarelas e os seus arraiais vão ter que se reinventar para garantir a sua sobrevivência.
Esta tradição está condenada e a poucos anos de se consumar como uma breve nota de rodapé na história de Portugal.
Não vale a pena esperar uma nova vaga desta tradição através dos mais recentes emigrantes.
Ao contrário dos primeiros, estes, quando saíram, já eram fluentes em ambas as línguas. Não foram para França ou para a Suíça, mas sim para o Reino Unido, para a Alemanha, para a Dinamarca e para os EUA. São novos migrantes. Migrantes qualificados. Ambiciosos. Migrantes que, em muitos casos, nem sequer procuraram emprego em Portugal.
Muitos optaram logo por uma posição lá fora que lhes garante um salário mais alto e melhores condições que aquelas que alguma vez as nossas empresas lhes seriam capazes de oferecer.
As suas férias são passadas a viajar pelo Mundo fora. São uma geração europeia, cosmopolita e multicultural. Uma geração Erasmus, com vontade de atravessar novos horizontes. Uma geração que quando emigra não o faz para juntar dinheiro para um dia regressar, mas sim para construir a sua carreira e, talvez, uma família lá fora.
Vão sempre voltar para visitar os seus familiares mas, não no Verão, não durante um mês. O Natal, a Páscoa e outras datas importantes serão as escolhidas. Também estes vão regressar de avião e não de carro. Não vêm para impressionar ou meter inveja a ninguém, mas sim para matar saudades da família e daqueles que ficaram e para, em breve, regressarem à vida que lá fora constroem em permanência.
O destino está traçado e o alarme está prestes a tocar. Em breve o único motivo de reportagem na fronteira de Vilar Formoso será a ausência de tráfego onde antes muitos faziam fila. De carro cheio, sorridentes, e com novas matrículas amarelas para passear pela sua aldeia.
Um postal que, não tarda, passará a ficar guardado numa qualquer gaveta da memória colectiva da nossa história contemporânea.
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