Barco a Remos, Fabuland; Foto: Adriano Cerqueira |
Todos temos coisas que gostamos de adiar. Limpar a cozinha, arrumar o quarto, ir ao dentista, fazer exercício. A lista é infinita. Contudo, todas essas coisas atingem um ponto em que não podem mais ser adiadas. Num abrir e piscar de olhos, acordamos naquela data inevitável que ainda há dias parecia tão longínqua.
Quando a minha casa acabou de ser construída, há cerca de treze anos atrás, muitos dos meus brinquedos e objectos de infância, acabaram por ficar guardados num anexo que construímos ao fundo do meu quintal. É um simples coberto, sem portas, e com pouca protecção contra os elementos e a humidade. Ideal para fazer uns churrascos no Verão e para deixar a roupa a secar em dias de chuva, mas que para pouco mais serve.
E durante dez anos por ali ficaram. Guardados em caixas de cartão e sacos de plástico. Sem nenhuma organização aparente. Verão após Verão, adiava para o ano seguinte a árdua tarefa de os organizar. E de salvar aqueles que tivessem maior valor, das intempéries que os contínuos Invernos ameaçavam fazer cair sobre eles.
Apenas em Fevereiro de 2013 fui capaz de dizer basta. O inevitável dia que tanto fiz por adiar tinha finalmente chegado. A minha motivação chegou numa noite como qualquer outra. Antes do jantar, fui dar uma volta pelo quintal e passei pelo anexo. Uma saca entreaberta chamou-me a atenção. Lá dentro estava um jogo de tabuleiro do Space Jam. Uma raridade coleccionável que tinha saído como oferta no Jornal de Notícias em 1997. Foi com espanto que o encontrei ali, pois achava que tal como todos os meus jogos de tabuleiro e brinquedos mais valiosos, também este se encontrava a salvo no sótão da minha casa.
O meu primeiro instinto foi trazê-lo para dentro e ver se todas as peças ainda estavam intactas. Felizmente, o jogo estava completo. Com algum pó, mas completo. Na manhã seguinte, pus-me ao trabalho. Que outros tesouros estariam perdidos por ali à mercê dos elementos, das aranhas e dos gatos que por ali pernoitavam?
Demorei duas semanas a organizar as caixas. Uma semana para separar e reorganizar os conteúdos das caixas que estavam espalhadas pelo anexo, e outra para limpar os arrumos do sótão, pois também estes precisavam de uma intensa fascina.
A maioria dos brinquedos que encontrei no anexo não deixava qualquer saudade. Baldes de plástico, ancinhos, pás e formas para brincar na areia, prémios de ovos Kinder, velhos carros telecomandados há muito avariados, bolas, puzzles incompletos, e velhos jogos, ora ferrugentos ou simplesmente partidos. Mas, entre esta miríade de desilusão, houve algumas pequenas surpresas. A maior delas foi a minha colecção de sets da Lego.
Confesso que o principal motivo que me levou a demorar uma semana inteira para terminar de organizar as caixas dos anexos, foi a minha autoproclamada missão de completar todos os sets que ali encontrei.
Peça a peça, esmiucei cada recanto dos anexos e do sótão até ter a certeza que mais nenhuma iria encontrar. Para quem me conhece, isto pode parecer estranho, mas a verdade é que durante a minha infância não fui um grande fã de Lego. Power Rangers, Dragon Ball, Pokémon e Jurassic Park, foram os principais brinquedos que cativaram a minha imaginação. Havia sempre espaço para esses pequenos tijolos, mas nunca me cativavam a atenção por mais que alguns minutos. Por este motivo, deixei-os ali. A maioria deles estava dentro de um jarro de vidro. Memorabilia da antiga drogaria da minha avó. Contudo, os mais antigos, os Duplo, e os tijolos propriamente ditos, estavam espalhados por sacas e caixas de forma aleatória.
Entre 96 e 97, sempre que ia ao Modelo com os meus pais, costumava trazer um mini set. Vinham em pequenas caixas e custavam cerca de duzentos escudos. Ao todo coleccionei 22 durante esses dois anos. Costumava guardá-los nas suas caixas originais, mas quando nos mudámos, para poupar em espaço, pu-los todos dentro desse jarro. Infelizmente, também deitei fora as instruções, e com o passar dos anos por ali ficaram esquecidos. Ao fundo do meu quintal, dentro de um velho jarro de vidro.
Como não tinha guardado as instruções, não tinha forma de saber se estes estavam completos e a que sets pertenciam as outras peças que tinha encontrado. Após algumas horas de pesquisa online, encontrei o Brick Factory. Um site com um design a lembrar as páginas do Geocities, mas que tem a maior base de dados de instruções de sets da Lego.
Passei os dias seguintes a ver, ano a ano, a que sets pertenciam as peças que tinha então descoberto. Duvido que alguma vez tenha passado tanto tempo num único site como passei nesse. Com alguma sorte à mistura, descobri que todos esses vinte e dois sets estavam completos. Contudo, o mesmo não acontecia com os restantes, à excepção de um. O barco a remos da colecção Fabuland.
Quando andava na pré-primária aqui em São Miguel, lembro-me que tínhamos um balde de Legos com o qual brincávamos quase todos os dias. Muitas vezes acabava por trazer alguns para casa. Um deles, em particular, era um barco vermelho. Esse mesmo barco a remos.
Talvez por o ter trazido sem permissão mais que uma vez, acabei por receber o set completo. Não sei se este foi o primeiro set da Lego que alguma vez me ofereceram, mas sei que de todos aqueles que sobreviveram completos até aos dias de hoje, este é o mais antigo.
Fiquei tão feliz com a perspectiva de que algo tão antigo, chegou intacto às minhas mãos, com apenas algumas marcas de sujidade, que, ainda hoje, reservo para este barco a remos um local especial no meu quarto.
Este foi o maior tesouro que encontrei por entre aquelas caixas. Um pedaço da minha infância que sobreviveu a anos de negligência, esquecimento, e a incontáveis intempéries do tempo. A minha recordação mais antiga, e o primeiro tijolo na reconstrução do meu amor por estas pequenas peças.
Cada objecto conta a sua estória. As que viveu e aquelas que o futuro ainda lhe reserva. Esta não é a estória de um simples brinquedo, mas sim um pedaço da minha infância. Um episódio da minha história recente. Um pedaço das minhas paixões. Um pedaço de mim.
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