Imagem DR |
Quando era pequeno recebi uma garagem pelo Natal. Tinha cerca de quatro andares e uma pista em espiral. Passava horas a montá-la e a desmontá-la, fazendo corridas imaginárias com os meus carrinhos. A garagem era composta por peças de plástico. Pistas cinzentas com autocolantes, vigas vermelhas e pequenas molas para unir as pistas uma à outra.
Era possível montá-la de diversas formas, e assim me entretinha, a experimentar um novo design a cada dia que passava. Mas esta minha felicidade estava destinada a ser fugaz.
Numa tarde de Inverno, estava a brincar com a garagem na sala da minha avó. Levantei-me para mudar o canal na velha televisão Philips, idêntica àquela que ainda hoje deve ocupar o seu espaço no bar do meu liceu. Ao mudar de canal tropecei e caí sobre a garagem. A dor que senti naquele momento em nada se comparava com a mágoa que me envolveu, ao ver o meu brinquedo preferido ali, partido, sem remédio.
As pistas mantinham-se intactas, mas muitas das vigas estavam partidas. Tentei colá-las, mas sem efeito. Nada havia a fazer. Arrumei a garagem junto dos outros brinquedos, e ali ficou. Esquecida para sempre numa caixa de cartão.
Com o passar dos anos, vítima de incontáveis arrumações e desarrumações, e perdida por entre as mudanças, as peças que em tempos compunham a garagem, espalhavam-se agora por sacos, caixas, e gavetas. Perdidas entre brinquedos e outras efemeridades da minha casa.
Há pouco mais de um ano, tirei alguns dias para organizar os meus velhos brinquedos. O meu objectivo era recuperar aqueles que ainda retinham algum valor sentimental, organizá-los e dar-lhes um descanso mais digno do que ficarem apenas amontoados num canto do sótão, ou do coberto do meu quintal. Coberto esse, onde eram vítimas constantes de humidade, gatos passageiros e outras intempéries que os assolavam ao longo dos anos.
Por entre os sacos e caixas velhas, encontrei vários brinquedos partidos, ou avariados. De carros auto comandados, a formas de praia, e figuras partidas. Alguns, como a minha colecção de Legos ainda tiveram salvação. Outros, foram remetidos para uma caixa de objectos perdidos, ou até mesmo para o inevitável lixo.
Contudo, enquanto mergulhava por aquele mar de peças, ia encontrando alguns pedaços dessa velha garagem. Uma viga. Um parafuso. Um pedaço de pista. Todos juntos talvez dessem para compor um terço da garagem original. Ali continuavam, dispersos, partidos, inúteis. Mas ali continuavam.
Tivesse eu mais cuidado, e talvez hoje fosse capaz de a recuperar. Tivesse eu mais atenção ao levantar-me naquele fatídico dia, e talvez hoje ainda a pudesse montar, e reviver um pequeno pedaço desse sentimento de infância que há muito perdi.
Uma memória destacou-se das outras quando encontrei a primeira peça. Já na minha adolescência, estava a fazer compras no velho Modelo de Ovar e vi lá a garagem em destaque. Todas as lembranças daquelas tardes a brincar com ela, na casa da minha avó, vieram ao de cima. Queria levá-la comigo. Voltar a montá-la, e substituir o brinquedo partido por um novo. Quis fazê-lo, mas não o fiz.
Parte de mim ainda se arrepende de não o ter feito. Era adolescente e não fazia sentido gastar dinheiro com brinquedos, ou assim pensava. Se hoje a voltasse a encontrar à venda, consoante o preço, era capaz de a comprar. Mas tal acto não passaria de um mero descargo de consciência.
Aquela não seria a minha garagem, apenas uma réplica. Um simples substituto que chegara tarde demais. A minha garagem, hoje, não passa de uma amálgama de peças soltas e desunidas. Uma sombra daquilo que em tempos foi. Um brinquedo partido. Apenas um brinquedo partido.
No comments:
Post a Comment