The Real Story of Sur le Pont d'Avignon, Jerome na Ponte |
Crescer nos anos 90 significava que os sábados de manhã eram sinónimo de desenhos-animados. Era uma tradição profundamente embrenhada no nosso consciente colectivo. Mais do que ansiar pelo fim-de-semana para não ter que ir à escola, queríamos sim saber em que novas aventuras os nossos heróis se tinham metido.
Após terminar o meu prato de estrelitas, a minha companhia
para aquelas manhãs eram animes como Sailor Moon, Dragon Ball ou Pokémon,
séries live action como Power Rangers,
Beetleborgs ou VR Troopers, e séries de animação icónicas como Denver, the Last
Dinosaur, Widget, the World Watcher, Captain Planet ou A Carrinha Mágica.
Com modelos como estes é assim tão impressionante que toda
uma geração tenha crescido com uma vontade inabalável de proteger o ambiente?
Infelizmente, nem todos os desenhos-animados daquele tempo
sobreviveram até aos dias de hoje. Alguns transformaram-se em séries de culto,
alimentando grupos de fãs que procuram algo fora da norma, enquanto outros
simplesmente se perderam, sobrevivendo apenas na memória de quem os viu.
Em 1992 o estúdio de animação franco-canadiano Cinar
produziu um desenho-animado com o nome de ‘The Real Story of’. Entre 1991 e
1994 foram produzidos 13 episódios, cada um com cerca de 23 minutos de duração.
Cada episódio tinha como premissa mostrar a “verdadeira” história de uma
popular música infantil.
Em Portugal este desenho-animado foi emitido pela RTP com
repetições regulares durante a década de 90 nos dias próximos ao Natal. Havia
um em particular, sobre a música francesa Sur le Pont d’Avignon, que dava todos
os anos na manhã da véspera de Natal. Raro foi o ano que não o apanhava a dar,
sem fazer qualquer esforço para o ver. Talvez por isso, acabou por se tornar
para mim numa pequena tradição natalícia.
Numa estranha tradição natalícia. Afinal, este episódio nada
tem a ver com o Natal. E, como se isso não bastasse, a sua história estava
longe de ter um final feliz.
Este episódio começa numa noite há mais de duzentos anos
atrás, durante uma festa sobre a ponte de Avignon. Esta festa conta com a
presença do Rei e de vários artistas de circo, incluindo o habitual bobo da
corte. Na entrada da ponte estava um órgão enorme que, ao dar à manivela,
conseguia ler e tocar uma partitura de música similar aos cartões furados que
eram lidos por aqueles gigantes computadores dos anos 60. A música era, sem
grande espanto, Sur le Pont d’Avignon.
Durante a festa, o bobo da corte decide roubar um saco de
ouro que o Rei tinha no seu trono e escondê-lo no interior do órgão. O Rei
apercebe-se da ausência do seu saco e trava as festividades para que o mesmo
possa ser encontrado.
Para se safar, o bobo da corte acusa o dono do órgão de ter
roubado o saco de ouro do Rei. O Rei, sem hesitação, ordena que o senhor seja
executado no local. O velhote, que pelos vistos tinha poderes mágicos, amaldiçoa
o Rei e faz com que a ponte caia levando com ela todos os feirantes, incluindo
o bobo da corte, forçando as suas almas a dançarem naquela ponte ao ritmo da
canção Sur le Pont d’Avignon para toda a eternidade.
A maldição só será levantada quando ao balar da meia-noite,
o órgão tocar aquela música até ao fim. Para evitar que isto aconteça, o dono
do órgão rasga a partitura ao meio e deixa que o vento leve uma das metades
para longe.
O Rei vê incrédulo a sua ponte cair e nada faz para salvar
as pessoas que nela estavam.
Avançamos de seguida para a actualidade, ou pelo menos para
a actualidade de 1992, onde uma criança chamada Jerome visita o seu avô, uma
figura muito semelhante ao dono do órgão, que tem uma loja de antiguidades. O
Jerome tem um esquilo de estimação por algum motivo. Isto é pouco relevante
para a história mas achei que deviam saber.
Enquanto Jerome fala com o seu avô na sua loja de
antiguidades um polícia entra pela porta a dentro com um decreto a exigir que o
avô de Jerome pague uma dívida que tem em falta ou então será forçado a fechar
a loja.
Jerome e o seu avô procuram por algo valioso para pagar a
dívida no interior da loja e encontram na sua cave o órgão. Jerome roda à
manivela, a música começa a tocar e, lá fora, vemos a parte da ponte que caiu a
reaparecer com umas figuras encapuçadas a dançar ao som da música. Entre estas
figuras fantasmagóricas está o bobo da corte que, de alguma forma, consegue se
libertar do feitiço e atravessar a ponte para o Mundo real.
Jerome descobre que falta metade da partitura do órgão e, na
manhã seguinte, vai com o seu avô ao arquivo municipal procurar pela outra
metade. O bobo segue-os e, por acidente, acaba por encontrar a outra metade da
partitura numa sala do arquivo.
Segue-se uma perseguição de Jerome e do seu esquilo ao bobo
pelos telhados de Avignon. Perseguição essa que desafia as leis da física de
forma mais descarada que qualquer filme de Velocidade Furiosa.
No fim Jerome consegue apanhar a segunda metade da partitura
e colá-la à metade que estava no órgão. O bobo tenta travá-lo, sem sucesso,
acabando por desistir de tentar viver no Mundo actual, regressando por fim à
ponte para se juntar aos restantes feirantes.
Quando bate a meia-noite o avô de Jerome faz o órgão tocar.
A ponte volta a aparecer com as mesmas figuras encapuçadas a dançar. Quando a
música chega ao fim, as figuras libertam as suas mantas e revelam os feirantes
que tinham caído com a ponte. Estes juntam-se numa nuvem e sobem aos céus, as
suas almas enfim livres da maldição.
A nuvem é uma amálgama da cara dos diferentes feirantes que,
ao subir, cantam a música Sur le Pont d’Avignon.
Jerome encontra o saco de ouro no órgão e oferece-o ao avô
para pagar a dívida e manter a sua loja aberta.
The Real Story of Sur le Pont d'Avignon, A Núvem |
Como podem perceber, este episódio ficou gravado na minha
memória não por ser uma recordação feliz, mas por ser bastante perturbador. Não
admira que seja praticamente impossível encontrá-lo online. Este
desenho-animado é capaz de dar pesadelos até mesmo a adultos.
Por onde começar. Se foi o Rei quem acusou erradamente o
dono do órgão, por que decidiu ele matar todos os feirantes e não o Rei? Por
serem meros servos? Pessoalmente não sou favorável a chacinar inocentes pela
acção de um único ladrão, muito menos a condená-los a passar a eternidade a
dançar numa ponte caída.
Compreendo que estes feirantes teriam dificuldades em
adaptar-se ao Mundo actual, no entanto este final é bastante anticlimático.
Após séculos a dançar numa ponte a sua recompensa é transformarem-se numa nuvem
e subir aos céus a cantar a mesma música que os atormentou?
Não me recordo de ver uma tortura tão penosa nem sequer n’A
Divina Comédia. E isto era um desenho-animado dirigido para crianças de tenra
idade.
Compreensivelmente, este episódio não está disponível na sua
versão original online. No entanto, existe uma versão deste episódio com uma
voz polaca a falar por cima das falas das personagens no Youtube. Não chamaria
a isto uma dobragem visto que é sempre a mesma voz a falar e, quem tem bom
ouvido, consegue ainda perceber as falas originais em inglês.
Podem ver o episódio nas seguintes ligações: Parte 1 | Parte2
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