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Passaram já seis anos desde que fui diagnosticado com intolerância à lactose. De um momento para o outro a punchline de uma qualquer sitcom passou a ser uma grande parte da minha vida. Um desbloqueador de conversas, uma peculiaridade, enfim, passei a ser aquele tipo que em todas as pizzarias tem que explicar ao empregado o porquê de ter pedido uma pizza sem queijo. Estou certo que algumas já devem ter vindo com algum cuspe como ingrediente surpresa.
Estaria a mentir se dissesse que a transição para uma alimentação desprovida de leite e dos seus derivados foi fácil. Não foi. Longe disso. Desde que me conheço que os meus pequenos-almoços consistiam de leite com cereais. Após passar uma temporada no hospital a propósito de uma gastroenterite daquelas mesmo fortes quando tinha 14 anos, ainda tentei suster-me à base de bolachas e chá pela manhã, mas esse martírio não durou mais que dois meses. A verdade é que sempre tive dificuldade em comer algo mais sólido pela manhã. Sou a antítese do típico pequeno-almoço britânico, quanto mais líquido e menos consistente, melhor.
Com o passar dos anos comecei a conseguir experimentar coisas novas. Torradas acompanhadas por uma caneca de cevada, eram o substituto ideal para aquelas manhãs em que o leite ou os cereais já se tinham terminado, e ainda não tinha ido às compras. Foi essa a solução natural para corrigir a minha necessidade de cereais logo após o acordar. Pelo menos, durante algum tempo.
Como nunca gostei de manteiga, já barrava as torradas com margarina bem antes de saber sequer que a intolerância à lactose era mesmo algo real e não apenas um instrumento argumentativo que os escritores de comédia adoravam usar. Quando eventualmente me fartei de comer pão seco todas as manhãs, recorri ao leite de soja para fazer regressar os meus tão adorados cereais à minha dieta matinal.
Esta solução não foi tão simples para as minhas restantes refeições. Desde pequeno que sempre comia um iogurte depois do almoço, uma sandes mista a meio da tarde, e a ocasional salsicha enrolada em queijo com batatas fritas e mostarda que fazia a meio da noite sempre que não conseguia dormir, o que era muito comum na minha adolescência e no início das minhas aventuras como jovem adulto.
Isto para não falar de todas as refeições deliciosas que contêm queijo, como Pizza, Lasanha, e uma grande parte da gastronomia italiana que sempre adorei. Mas o golpe mais duro foram mesmo os doces. Sempre disse que, se possível, vivia apenas de bolos, doces e outras sobremesas. Contudo, raro é aquele que não contém uma pequena dose de leite. Nunca apreciei leite-creme, mas aletria (esta ‘a’ no início da palavra vai sempre fazer-me confusão), cheesecakes, pão-de-ló, e qualquer outro bolo amanteigado passaram assim a entrar na lista de coisas que devo evitar.
Os mais entendidos neste assunto já devem ter percebido que a minha intolerância não é das mais graves. Tinha 21 anos quando após dois meses de dores intermitentes e agonizantes acabei por faltar a duas semanas de aulas, entre hospital, consultas e muitas horas passadas em casa a recuperar. Perdi sete quilos e ganhei uma gigantesca dose de medicamentos como acompanhamento para as minhas refeições dos meses que se seguiram.
Enfim voltei a atingir a normalidade. Era Maio quando finalmente consegui sair de casa para correr com os meus amigos até ao Furadouro. Lembro-me bem dessa tarde. Foi a primeira vez em meses que me senti com energia para fazer algo mais exigente do que levantar-me da cama.
À custa deste episódio herdei um sistema digestivo bastante delicado. Além do leite há outros alimentos que raramente acompanham a minha dieta, como feijões, batatas, azeitonas, tremoços, bananas, amendoins e outros frutos secos, a grande maioria das bebidas gaseificadas, e qualquer prato excessivamente picante. Nenhum destes alimentos, além do leite, são proibitivos, mas desde então que moderei bastante a forma e a frequência com que os consumo.
O mesmo acontece com bolos, doces e outros produtos feitos com leite e seus derivados. Evito-os, mas uma fatia ou outra não me faz mal. É impressionante a quantidade de alimentos que consumimos com alguma porção de lactose, por mais ínfima que seja. Basicamente, para ter uma dieta verdadeiramente saudável, teria que cozinhar todas as minhas refeições, do mais elaborado jantar, à mais simples bolacha. E ninguém tem tempo para isso.
Não é que não goste de cozinhar, mas imaginem que sempre que vos apetece um palmiere ou um Pão de Deus o tivessem que cozinhar. Pois.
Por isso corro alguns riscos de vez em quando, compensando sempre com uma extra dose de fibra e água para amenizar as inevitáveis consequências de uma inapropriada refeição rica em lactose.
Volta e meia recordo-me de todos aqueles Ucal, Ovos Kinder, queijos da serra e fatias de bolos que recusei ao longo dos anos. Hoje arrependo-me de todas essas decisões, especialmente porque Ucal sem lactose é possivelmente a bebida mais enjoativa que alguma vez foi criada. Parem de tentar brincar com a ordem natural das coisas e deixem o leite ser leite. Ucal de soja com chocolate teria sido uma ideia tão melhor…
Felizmente a soja é um bom substituto para a maioria das ofertas que o leite proporciona. O leite de soja é melhor, mais leve, mais suave e o sabor conjuga bem com os cereais, especialmente com os de chocolate. Os iogurtes e os pudins de soja não são maus e, para quem não gosta de soja, existem outras alternativas como o leite de aveia, e o de arroz.
São produtos mais caros que o típico leite de vaca, mas são mais saudáveis e boas alternativas para quem quiser cortar o leite da sua dieta.
Os últimos seis anos foram ricos em experiências e em constantes mudanças, aleatórias, inesperadas e previsíveis em todos os aspectos da minha vida. Aquela manhã em Março de 2010 quando acordei com dores indescritíveis e uma falsa ameaça de apendicite foi, possivelmente, apenas o início de uma longa aventura que ainda hoje se perpétua no tempo.
Sou intolerante à lactose. É algo que faz parte de mim. Mas não é algo que me define.