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O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Alberto Caeiro, em “O Guardador de Rebanhos”
Há dias que acordamos com um profundo sorriso a iluminar a nossa manhã. O sol brilha através da janela, deixamo-nos envolver pelo seu calor, e por uma energia indescritível que nos move para sair da cama. Dias em tudo idênticos a um outro qualquer, mas que nos abraçam por uma onda imparável de optimismo.
O nosso andar ganha um ligeiro toque de dança, a nossa face transpira confiança, e as pessoas com quem nos cruzamos não conseguem deixar de esboçar um sorriso, ou de nos abordar com um alegre “bom dia”.
Para mim, um desses dias aconteceu a nove de Janeiro. Uma quinta-feira como qualquer outra. Talvez movido pelo entusiasmo e pela ansiedade da viagem que ia fazer no dia seguinte. Talvez apenas por se tratar de uma manhã calma banhada por um morno Sol de Inverno. Acordei envolvido por uma forte e constante brisa de energias positivas. Um sentimento reflexo na minha face, e na de todos aqueles que se cruzaram no meu caminho.
Todas as manhãs desloco-me a pé para o trabalho. Um percurso que me demora entre quinze a vinte minutos. Há já alguns meses que comecei a ir pelo caminho mais directo, em constante descida, evitando assim a preguiça de aguardar pelo elevador de Santo André.
Embora o elevador me permita vislumbrar parte da paisagem da Serra, prefiro fazer o outro caminho. Escondido por entre algumas vielas em paralelo, esta rua pouco conhecida e quase inacessível para os carros, é um atalho que me oferece um ligeiro conforto no meu rotineiro destino matinal.
Guardado por um mural pintado com uma representação da cidade, envolto por umas esguias escadas que contornam uma capela em granito, este caminho leva-me pelas traseiras de uma despida Galeria Comercial. Ao lado da mesma, quase no fim da rua, encontro uma escola.
Pelas vozes agudas, pelos cânticos e risos de crianças, que nunca vejo, presumo que se trate de uma Escola Primária, algo camuflada por entre os edifícios desta escarpa. Nessa manhã, não me recordo de ouvir o típico alvoroço das brincadeiras de recreio, nem tão pouco dos alegres desconhecidos que se cruzaram comigo. Mas houve um pequeno pormenor que chamou a minha atenção.
Por entre a rua de paralelos, a brilhar através dos interstícios do granito, estava uma peça de Lego. Um pequeno tijolo amarelo de quatro encaixes. Uma das peças mais comuns que podemos encontrar. Parei para o observar. Estava sujo e um pouco gasto numa das faces, mas fora isso, era perfeito.
Olhei em volta para ver se encontrava a criança a quem aquela peça pertencia, mas estava só naquela viela. Pelo acumular de detritos à sua volta, fiquei com a sensação que este Lego já ali se encontrava há alguns dias. Limpei-o e trouxe-o comigo.
Não me lembro de mais nada sobre o resto do dia. Apenas aquele momento guardo com o máximo de pormenor. Esta quinta-feira, pela simples onda de optimismo que me despertou, tinha já para si reservado um espaço nas minhas memórias. Mas este pequeno pormenor. Este momento que quase me passou ao lado, tivesse eu escolhido ir pelo elevador, fez com que lhe desse o nome do “dia em que encontrei um Lego amarelo”.
Hoje guardo-o no meu quarto, juntamente com outros objectos recheados de simbolismo. São curiosas as coisas que se cruzam no nosso caminho. De tão efémeras passagens, que o mais minúsculo pormenor nos pode desviar do seu encontro.
O anúncio de emprego que encontramos no twitter. As pessoas que conhecemos quando não queríamos sair de casa. Um “olá” dividido por entre umas escadas passageiras. O avião perdido. O encontro adiado. A peça de Lego que encontramos no chão.
Coincidências. Destino. Caos. A beleza do acaso que aprendemos a apreciar quando olhamos à nossa volta, e encaramos o imprevisto que o dia nos tem para oferecer.