Imagem DR |
Ou como a vontade colectiva de um povo é capaz de superar qualquer imposição, regra, ou legislação. Desde que me conheço que digo “embaralhar”. Alguns riem-se e dizem que é um erro. Outros presumem que não passa de um regionalismo. Mas para uma pequena percentagem da população, esta palavra nada mais é que um termo comum, tão correcto como qualquer outra palavra escrita até este ponto. Ignoremos o acordo ortográfico, pois “colectiva” e “correcto” são tão mais belos com aquele silencioso “c” por ali ilustrado.
Nunca fui um ávido jogador de cartas. Prefiro outros jogos como Uno, Monopólio, Cluedo e o ocasional Scrabble. Embora tenha experimentado um pouco de Magic, este não foi capaz de me seduzir. Apenas Pokémon, e o seu jogo de cartas, foram capazes de me forçar a entrar em torneios e a investir uma considerável quantidade de tempo e dinheiro num passatempo deste género. Mas mesmo essa tentação não foi além da minha pré-adolescência, e de um ocasional rasgo de nostalgia.
Nos torneios em que participava semanalmente no café “A Cave”, sempre que a situação o ditava dizia a palavra “embaralhar” com toda a naturalidade que esta sempre me reservou. Os restantes jogadores anuíam e também eles a repetiam sem pensarem uma ou duas vezes. Na praia, a jogar às cartas ou ao Uno com os meus pais, o mesmo acontecia. Não fossem eles quem me ensinou o sentido desta palavra.
Tive que aguardar até ao meu segundo ano de faculdade para ouvir pela primeira vez alguém a contestar o meu uso do termo “embaralhar”. Na altura achei peculiar o reparo. Nunca tinha ouvido a palavra “baralhar” até aquele ponto. Parecia um objecto estranho e alienígena. Essa palavra truncada é que parecia sim um erro em comparação com o meu fiel “embaralhar”.
Os restantes jogadores encolheram os ombros e disseram que não devia passar de um regionalismo. Não estava convencido. Fui pesquisar, e, de facto, tanto “embaralhar” como “baralhar” existem e encontram-se no dicionário. Têm ambas o mesmo significado, sendo que a primeira surgiu através da segunda.
“Embaralhar” não era um erro, mas sim um coloquialismo, uma palavra transformada pela oralidade, escrita em bom português e aclamada por um povo que viu no original “baralhar”, uma palavra sem jeito, mas com espaço para melhorar. Nasceu assim “embaralhar”, por aclamação popular e pela necessidade de registo de um termo comum, evoluído de outra palavra igualmente banal.
Gostamos muito de brincar com quem diz “arrebentar”, “alevantar” ou “ajuntar”. Contudo, são eles os donos da última gargalhada. Seja por teimosia, insistência, ou por mera coloquialidade, todas estas palavras figuram hoje no dicionário como termos correctos. Informais, decerto, mas correctos. Não são erros, mas sim meras palavras criadas pela adjunção do prefixo protético “a-“.
Nem todas possuem a beleza de um “embaralhar”, nem tão pouco são palavras capazes de soar inteligentes. Contudo, elas existem. Fazem parte da nossa língua, da nossa memória colectiva, e são hoje parte da nossa cultura.
A língua não é um ser estanque no epítome patamar da sua evolução. Mas sim um organismo vivo, em constante crescimento, sujeito à mais ínfima mutação do seu ADN, surja esta por decreto, por consenso, ou por aclamação popular.
Talvez seja hipocrisia da minha parte elogiar o acto de “embaralhar” e ser, contudo, incapaz de me livrar do “c” ou de me deixar levar por esse desnecessário acordo ortográfico. Talvez assim seja por dar mais valor à aclamação popular em detrimento de acordos fechados em salas escuras com pouco ou nenhum recurso à opinião daqueles que serão mais afectados por essas mesmas decisões.
Enfim, vou continuar a “embaralhar”, pois o Português é uma língua tão rica e cheia de potencial. Todos aqueles que contribuam para o seu crescimento e para o sem embelezamento, são bem-vindos.
São bem-vindos a participar na dança eterna do verbo lusitano que, ontem, como hoje, continua vivo, a crescer, a evoluir, e, enfim, a embaralhar.