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O silêncio só existe em contraste com o barulho. Se não há barulho a contrastar, é ele próprio barulhento. E então apetece o ruído para ele ser menos ruidoso.
Conta-Corrente 3, Vergílio Ferreira
Há uma certa arte em saber dar valor ao silêncio. Se o absoluto silêncio, ou melhor, se a ausência de som nos consegue levar à loucura em poucos minutos, o mesmo também pode acontecer em relação ao ruído. A verdade é que nos acostumamos tanto ao ruído da cidade que a sua ausência torna-se insuportável.
Nunca senti o meu quarto como um espaço silencioso. Nem mesmo naquelas longas noites onde, incapaz de adormecer, procurava por um canto para ouvir música no meu velho leitor de CDs. A partir de uma certa hora a passagem do ocasional carro nada mais era que um acontecimento esporádico e, talvez por isso, ensurdecedor. Mas muitas eram as noites onde nem um único motor se atrevia a dar voz a um imperceptível anoitecer.
O comboio já era outra história. Os últimos urbanos e o inter-cidades faziam-se ouvir, ao fundo, em fugazes passagens, até perto da uma da manhã. A partir daí só sobrava um, o de cargas das duas e meia. Lá ao fundo, nos carris, a pressão de uma dezena de vagões, ressoava pela noite dentro, todas as noites, à mesma hora. Se algum dia se atrasou, estou certo que o meu cérebro reproduzia o seu som, como um qualquer alarme memorizado na experiência de incontáveis noites raramente distintas uma da outra.
Quando comecei a trocar o meu quarto por cinco dias a cem ou duzentos quilómetros de distância, a primeira falta que se fez notar foi esse som. Não o silêncio de uma rua pouco movimentada, isso até há um ano, sempre tive. Mas sim, o alarme de um comboio que, ainda hoje, por vezes juro ser capaz de ouvir. Lá ao longe, numa curva distante, a seguir para sul com toda a sua velocidade.
Tão estranho como errático, era o pedalar daquela bicicleta. Também ela pontual, embora não pedalasse todos os dias. Quando o fazia era tarde. Sempre para lá da uma da manhã. Alguém passava de bicicleta ora para lá, ora para cá, no limite das suas capacidades, com pressa para algures chegar. Creio ter-me cruzado com ela, em uma ou outra noite marcada por um tardio regresso a casa, contudo, como aquele interruptor que não sabemos para que serve, não passava de uma visão no canto do olho. Sempre ali, constante, mas impossível de discernir do padrão natural das ruas que tomamos por garantidas.
Não, o meu quarto não é ruidoso. Estes sons pontuais apenas entretiam o tédio das longas noites em que o sono tardava em chegar. Na Covilhã tinha apenas o silêncio. O silêncio e uma cascata constante, algumas centenas de metros para baixo do meu andar. A água gritava baixinho por entre as rochas, mais calma que uma chuva de mediana natureza. Já em Coimbra era apenas eu. O passageiro trânsito nocturno e umas largas centenas de noites estreladas. Apenas encontrava desconforto nas camas impropriamente montadas e no ocasional irrequieto vizinho.
Em Lisboa aprendi a dar valor ao silêncio. Para lá da minha porta está uma estrada em constante reboliço. Não importa a hora da noite ou o dia da semana. O trânsito é constante, rápido e imparável. Aliado a isto, o meu vizinho caminha pela casa, revoltado com as suas portas, em voz alta ao telefone até à uma da manhã, quando o não faz até mais tarde.
Como criaturas de hábitos que somos, aprendemos a viver com o ruído. O silêncio do meu quarto, quando enfim regresso a casa, é hoje ensurdecedor. Ir a casa é sinónimo de mil e uma tarefas que por duas ou três semanas sou forçado a adiar. Talvez por isso durma pouco. Tarde me deito e ainda mais cedo desperto. Mas o silêncio tem o seu papel. Adoro matar saudades daquela misteriosa bicicleta nocturna, e do comboio de cargas longínquo, mas há algo nas restantes horas da noite que me impede de dormir descansado.
Não é a falta de uma cascata, ou de vizinhos incómodos, mas sim a ausência de som. O fluxo constante de veículos. A azáfama interminável de uma cidade em constante alvoroço.
Nenhuma destas características é algo que me atraia. Troco o ruído pelo silêncio na primeira oportunidade. Contudo, temo. Temo que o meu organismo já esteja adaptado. Temo que dormir sem esta constante barulheira que mesmo agora teima em não ceder, seja já algo tão natural como o imperceptível som de um computador a processar.
Passado um ano, já consigo adormecer sem grandes problemas, especialmente nas semanas em que o meu vizinho se marca como ausente. Posso até mesmo deixar a janela aberta nos dias de maior calor sem que isto afecte o meu sono. É um hábito necessário que preferia não ter. Esta teimosia de aceitar o ruído como uma eventualidade natural.
Quero reabituar-me ao silêncio. Descansar durante sossegadas noites. Desabituar-me deste ruído. Silenciar a constante torrente de carros e deixar que esta se perca no horizonte.
Quero reabituar-me ao silêncio.