Foto: Rebocado em Março de 2014 |
É difícil não me recordar daquela fria manhã quando ambos os tanques do meu carro ficaram a zero. Dos longos minutos que estive parado no acesso à Ponte da Arrábida. Do funil que a funcionária da Repsol me emprestou e que não mais devolvi. E do garrafão de água que tive de esvaziar para o encher de gasolina. Um dia irei reconhecer a ironia deste momento, mas esse dia ainda não chegou.
Podia também relembrar os dois acidentes que tive. O primeiro por falha dos travões naquela chuvosa tarde de Janeiro. O segundo por distracção numa escura noite com pouca ou nenhuma História. Podia, mas não o vou fazer.
Todos os passeios até à Torreira, ou São Jacinto. A viagem até ao Aeroporto. As manhãs de quarta-feira. As aulas de Russo. Os regressos nocturnos do Porto. As incontáveis passagens por Aveiro, Santa Maria da Feira, Vale de Cambra, Albergaria, São João da Madeira e Oliveira de Azeméis. Aquele mês passado em Coimbra. As incontáveis idas ao Furadouro, ao Modelo e ao Continente. Os rotineiros percursos entre casa e a estação. Aquela noite que fui ver os The Kills na Casa da Música. Como chovia. Pouco ou nada conseguia ver à minha frente.
Seria fácil enumerar todos os sustos. Todos os momentos em que me deixaste ficar mal. Desde aquela Viagem Medieval que decidiste não arrancar. Até àquele jogo da selecção que nos obrigaste a regressar a pé.
São já dez anos de histórias. Dez anos de riscos. De pancadas. De viagens. De música. De momentos.
Há quatro que deixaste de ser meu. Passaste a ser um companheiro de fins-de-semana, de férias. De um Agosto sem cantina. Hoje raramente te vejo. Raramente te uso. Há muito que me deixaste de ser útil. Há muito que deixaste de partilhar os meus dias.
Temo que estes dez anos marquem o fim da nossa história. Temo não ser capaz de encontrar alguém que te revitalize. Alguém que te dê valor. Está na hora de seguir em frente. De te deixar para trás. De encontrar um carro novo e de escrever novas estórias atrás de um volante que não o teu.
Faz hoje dez anos que passei no exame de condução. Numa tarde em que me esqueci de dar o pisca no acesso à auto-estrada. Onde não me atrevi a ultrapassar os 80, e onde repeti todas as manobras pelo menos uma vez.
Podia ter contado como nessa mesma noite levei a antiga carrinha do meu pai até à Júlio Dinis para treinar no ginásio com o pessoal. Podia ter falado das diversas viagens que fiz. Ora contigo, ora com substitutos por um dia, ora com outros carros que não tu. Não o fiz e não o vou fazer.
Estás longe de ser um investimento. Foste apenas uma contínua despesa. Um longo buraco destinado a sugar todos os fundos necessários para se manter à deriva.
Estou a ser duro contigo, tal como tu foste. Uma besta difícil de domar. Imprevisível. Infiel. Inconsistente. Por vezes até desconfortável.
Nem sempre estiveste lá. Nem sempre foste uma opção. Afinal, eras apenas um carro. Velho, usado, longe dos seus tempos áureos. O que poupavas em combustível gastavas em reparações.
Não sei se a culpa foi minha. Do teu anterior dono. De nunca teres tido uma garagem. Do tempo. Da conversão para GPL. De quem te reparou. Da sorte. Ou de alguma simples sina ainda por decifrar.
Há dez anos foste a minha opção. Hoje talvez tivesse sido diferente. Mas, quanto a isso, nada posso fazer.
Até à nossa despedida, velho amigo, guardo em mim as recordações dos episódios que partilhámos. Apenas te peço que aguentes mais alguns meses até que encontre uma solução que te permita enfim descansar. Até lá continua a rolar. De casa para o Furadouro. Do Modelo para a Estação. Do Continente até ao Sal. Pelas estradas que tão bem aprendeste a conhecer. Até lá, velho amigo, continua a rolar, até ao meu regresso.