Tuesday, October 06, 2015

Os Legos da Minha Infância, ou Como Preciso de Perder o Controlo

Imagem DR
I could live a little better with the myths and the lies, when the darkness broke in, I just broke down and cried. I could live a little in a wider line, when the change is gone, when the urge is gone. To lose control. When here we come.

She’s Lost Control, Joy Division

Em Janeiro de 2013 estava desempregado. O meu contrato com a RTP tinha terminado a 4 de Dezembro, e as duas entrevistas de emprego a que tinha ido nesse mesmo mês resultaram em duas respostas negativas. Estava em casa em pleno Inverno, no hiato natural das séries que na altura seguia, já com pouco ou nada para fazer. Rapidamente gastei os poucos livros que ainda tinha para ler. Entretinha-me a escrever no meu blogue, e a pesquisar por novas oportunidades de emprego, às quais me candidatava religiosamente todas as semanas.

A minha semana era monótona, passada em frente ao PC em busca de alguma inspiração. Apenas as saídas ao fim-de-semana, o ocasional Quiz em Oliveira de Azeméis e as aulas semanais de Russo interrompiam essa minha rotina de tédio. Foi então que, ao fim de mais de dez anos, decidi arrumar os meus brinquedos velhos que se encontravam dispersos pelo coberto que habita a ponta do meu quintal. Anos de exposição a humidade, mudanças de temperatura, pó, insectos, e o ocasional gato vadio, deixaram as suas marcas em alguns deles, especialmente nos meus carros telecomandados que, após tanto tempo dificilmente algum dia voltariam a funcionar.

Tudo isto começou porque, uma noite, lembrei-me de ir salvar o meu velho jogo de tabuleiro do Space Jam, que lá se encontrava, por algum milagre, ainda intacto. Talvez não se lembrem mas este jogo foi uma oferta do Jornal de Notícias nos anos 90. Continha miniaturas das personagens do filme, e cartões de dominó com ilustrações dessas mesmas personagens. Após o recuperar, decidi usar o meu tempo livre para arrumar os restantes brinquedos. Os carros telecomandados foram limpos e guardados numa mala antiga que ainda hoje lá se encontra, assim como os meus velhos brinquedos de bebé, e inúmeras pás, raquetes, baldes e formas de plástico com as quais brincava na praia.

Entre esta variedade de velhas recordações, encontravam-se os meus legos, desde os Duplo, a pequenos sets que colecionei nos finais dos anos 90, a meros blocos coloridos que faziam ainda parte do único balde vermelho da Lego que tive na minha infância. Os blocos e os Duplo guardei-os nos respectivos baldes, cujas tampas já há muito desapareceram. Muitos deles tinham marcas de pó e de humidade, e alguns até guardavam algumas teias de aranha, entranhadas por entre os seus orifícios, que muito me custaram a limpar.

Voltei a minha atenção para os sets. Diversas minifiguras e peças customizadas, mas nenhuma caixa, nem tão pouco um único livro de instruções. Depois de ter terminado a reorganização, limpeza e arrumação dos restantes brinquedos, ataquei o Google em busca de uma base de dados que incluísse as instruções para os sets que se encontravam ali, unidos, mas sem qualquer coesão entre as diversas peças. Felizmente não tive que pesquisar muito até encontrar o Brick Factory. Um site que mais parece um fóssil vivo dos primórdios da internet. Um design adequado tendo em conta a nostalgia inerente à minha pesquisa. Este site inclui as instruções para a grande maioria dos sets da Lego, e permite que os utilizadores não só pesquisem pelo nome, ou pelo número de série, mas também pela data em que o set foi lançado.

Como não me recordava do nome de nenhum dos meus sets, e como o número de série há muito se tinha perdido quando as respectivas caixas foram deitadas fora, comecei a pesquisar por ano, desde os meados dos anos 80 até aos finais da década de 90. Foi uma tarefa árdua que me custou algumas horas e umas boas tardes de frustração mediada por pequenos momentos de sucesso. Numa semana encontrei as instruções para todos os sets que tinha.

Desses 36 sets, para minha grande surpresa, a maioria deles estavam ainda completos. Fora uma ou outra mazela, facilmente corrigida com um pano húmido, consegui recuperá-los e expô-los no meu quarto com o orgulho de um artefacto arqueológico descoberto num canto do meu quintal. Contudo, ainda havia uma questão que me mantinha acordado durante a noite. O que fazer com os sets incompletos? Podia simplesmente guardá-los numa caixa e ignorá-los. Lamentar a minha negligência para com a minha memorabilia de infância e seguir em frente. Mas assim não o fiz. Não faz parte da minha natureza.

Durante as semanas seguintes procurar as peças que faltavam transformou-se numa espécie de obsessão. Revirei a minha casa de pernas para o ar, abri cada caixa de brinquedos, daqueles que tiveram a sorte de se resguardarem nos arrumos do sótão da casa dos meus pais e que não sofreram o mesmo destino dos restantes que ficaram no quintal à mercê da misericórdia dos elementos. Essa tarefa, até um certo ponto hercúlea e desgastante, teve os seus frutos. Consegui completar alguns dos sets e arrumei de uma forma mais organizada os meus jogos de tabuleiro, carros de colecção, e outros brinquedos que se amontoavam pelos arrumos do sótão.

Mas ainda havia alguns que teimavam em permanecer incompletos. Estes eram os sets mais antigos, aqueles que me ofereceram quando ainda não tinha idade para me lembrar deles, quanto mais para ter o cuidado necessário para os preservar. Procurei em várias lojas, no site da Lego, em fóruns, até que enfim descobri o Bricklink. Uma hub de lojas e utilizadores especializada na venda de legos por set ou à peça. Neste site através do número de série de um set, é possível ver o seu inventário e procurar por utilizadores que vendam a peça específica que desejas. Rapidamente descobri as peças que precisava e, embora estivesse desempregado, não tivesse qualquer proposta de emprego, e já contasse com alguns meses sem vencimento, comprei-as. Gastei cerca de cinquenta euros nesses meses para completar os sets que durante anos ficaram esquecidos num coberto ao fundo do meu quintal.

Podia ter esperado para arranjar emprego, podia simplesmente tê-los ignorado, mas assim não o fiz. Sim, cinquenta euros é pouco, facilmente gastas mais numa ida ao supermercado, em roupa, num concerto, ou num jantar ao nível de um Oxalá, mas para um desempregado, mesmo alguém com a cultura de poupar o máximo que podia, cinquenta euros é dinheiro a mais para gastar em algo tão banal como velhas peças de Lego. Mas assim fiz. Completei-os, não os conseguia ver assim, como já disse, não faz parte da minha natureza.

Assim que os completei, expu-los junto dos restantes no meu quarto e esqueci-me deles. A aventura tinha terminado. Os meus Legos estavam completos e os meus brinquedos estavam arrumados. A ansiedade de controlo sobre um pequeno pedaço da minha esquecida infância, estava enfim saciada.

Ontem, enquanto fazia Insanity e me questionava sobre a possibilidade de me ver forçado a prolongar o meu dia de descanso por causa dos compromissos que vou ter nos próximos fins-de-semana, encontrei-me a pensar sobre esta minha necessidade de controlo e rapidamente associei-a a este episódio com os meus velhos Legos.

Este pequeno período de redescoberta da minha paixão por estes blocos de plástico é a analogia perfeita para a minha necessidade de controlo em todos os aspectos da minha vida. E pela ansiedade que me assola sempre que esse controlo está fora das minhas mãos e longe do meu alcance.

Se uma colecção está incompleta, se um brinquedo está partido, ou se um Lego está perdido, posso sempre comprá-lo. Procurar no eBay, na Amazon, no OLX, em feiras de antiguidades, em fóruns, e em conversa com outros aficionados. Se um livro ficar por ler, encontro tempo para o terminar. Se hoje não posso fazer Insanity, acordo mais cedo, deito-me mais tarde, salto o próximo dia de descanso, ou simplesmente continuo amanhã no mesmo ponto como se hoje não tivesse acontecido. Se preciso de ter uma boa nota num teste, estudo. Se preciso de emprego, preparo bem a entrevista. Se quero impressionar o meu chefe, chego mais cedo, trabalho o dobro, mostro proatividade, e dou o meu máximo. Contudo, esta fórmula não funciona em todos os aspectos da tua vida.

No amor, na amizade, e até mesmo com a tua família, não dependes apenas de ti. Podes ser simpático, podes saber ouvir, podes ser prestável e estar sempre lá quando alguém precisa de ti. Mas isto pode não ser suficiente. Mesmo que não tomes alguém por garantido, que te esforces por ser bom para alguém, que procures surpreender quem te rodeia com grandes acções, ou com pequenos gestos. No fim do dia, nunca estás dependente de ti próprio. Duas pessoas que no papel são perfeitas uma para outra, podem nunca se apaixonar, podem não conseguir manter uma conversa, ou até mesmo dispensar a companhia uma da outra.

Não existe uma fórmula matemática para o amor ou para a amizade. São eventos aleatórios que aproximam as pessoas, desejos incontroláveis que as mantêm juntas, e que podem tão facilmente também as separar. São dados lançados com um resultado incerto, uma aposta, um risco, um desafio com o qual temos que saber lidar, independentemente das suas consequências.

O mesmo acontece com a nossa família, uma lotaria genética e de circunstância que pode ou não ser algo com o qual nos identificamos. Tudo isto elementos completamente fora do nosso controlo. Não existem fóruns com as soluções para um coração partido, não existem sites com instruções para completar uma amizade, e não podes comprar uma nova infância no eBay.

Sou vítima de mim próprio. Da minha fértil imaginação. Da minha necessidade de controlo. Da ansiedade por um futuro inexistente, e da frustração por um passado presente. Não é fácil aceitar a perda de controlo. Não é fácil ignorar um Lego incompleto. Não para mim, não faz parte da minha natureza.

O controlo é uma obsessão. Um mal, por vezes útil, por vezes necessário, mas, na maior parte das vezes, não passa de um mal doentio. Um mal que te consome aos poucos. Uma chama que queima lentamente. Um travão incapacitante.

Jamais ignoraria os meus Legos, quer os velhos, quer aqueles que hoje colecciono, mas preciso de perder o controlo. Preciso de saber aceitar que quando perco uma peça, não preciso de a substituir, quer no imediato, ou até mesmo nunca. Alguns brinquedos ficam melhor guardados nas suas caixas, outros nas recordações que tão saudosamente guardamos. Nenhum Lego vale uma noite perdida. Nenhum Lego precisa do teu controlo. Nenhum Eu precisa do meu controlo.

Preciso de perder o controlo. Preciso de ignorar aquela peça incompleta. Preciso de perder o controlo. Preciso de esquecer o brinquedo partido. Preciso de perder o controlo. Preciso de perder o controlo.

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