Thursday, February 19, 2015

Mil e Uma Noites de Carnaval

Carnaval de Ovar, Noite dos Dominós de 2011
A minha relação com o Carnaval é, no mínimo, complicada. Uma história complexa que, com maior ou menor evidência, acaba sempre por deixar a sua marca na habitual corrente de cada ano. Tendo vivido em Ovar durante grande parte da minha vida, seria de esperar que esta fosse a minha época preferida do ano, ou pelo menos aquela por que mais ansiava. Contudo, isso não podia estar mais longe da verdade.

A minha história começa cedo, quase no início. Os meus primeiros Carnavais resumem-se a uma ou outra foto em álbuns há muito perdidos algures pelas gavetas do sótão. Por melhor que seja a minha memória, são muito poucas as recordações que retenho de idades mais tenras que o meu sexto aniversário.

Sempre gostei de me fantasiar. Poder por um momento encarnar outra personagem que não eu. Dar asas à imaginação e ver o Mundo pelos olhos de uma máscara recém-encarnada. Contudo, foram raras as vezes que efectivamente encontrei um fato que realmente quisesse usar.

Em Ovar, no fim-de-semana que antecede o efémero Entrudo, realiza-se o Carnaval das Crianças. Um cortejo pelo centro da cidade, onde as crianças das escolas primárias locais se fantasiam e desfilam, com coreografias em tudo similares às dos adultos. “No meu tempo”, sinto-me sempre velho quando tenho que dizer algo como isto, mas enfim. No meu tempo, havia dois desfiles das escolas primárias. Um à sexta-feira para as escolas das classes mais baixas, e outro ao domingo para as restantes. Este tipo de discriminação levava o povo a chamar um de Carnaval dos Pobres, e o outro dos Ricos. A minha escola desfilava à sexta-feira de manhã, um percurso curto pelo centro da cidade, mal cortavam o trânsito para podermos passar, e quase ninguém usava as bancadas.

Na altura, não ligava a este tipo de separatismo elitista, apenas me preocupava com o que ia ter que andar, e com a vergonha de passear-me fantasiado pelo meio da cidade. Um destes Carnavais está mais presente que os restantes. Creio que andava na terceira classe quando fomos todos vestidos como computadores de cartão. Uma forma de protesto para que a nossa escola pudesse ter um computador. Essa máquina tão desejada acabou por chegar ainda antes de eu terminar a quarta classe, mas apenas os professores a podiam usar.

Nesse mesmo ano, encontrei no Barreto um fato vermelho de Ninja. Vinha com duas espadas de plástico e facilmente encantou a minha infantil imaginação. No domingo de Carnaval, estreei-o e assim fui com a minha mãe ver o desfile. Infelizmente, por causa do calor – sim, calor, foi um Carnaval tardio naqueles meses de Março aberrantes onde o Verão tenta roubar a ribalta à Primavera – senti-me mal e tive que voltar para casa. Não devo ter ficado lá mais do que uma hora.

Nunca gostei particularmente de assistir ao desfile. São muitas horas seguidas, de pé ou sentado, à espera que os diversos grupos terminem a sua coreografia pela Avenida Sá Carneiro. Três a cinco horas passadas ao frio, ou até mesmo à chuva, é algo que duvido que alguém possa achar agradável. Todos os anos apanhava uma constipação séria logo a seguir ao Carnaval. Sempre associei esta festa a estar doente, e a longos domingos aborrecidos.

Tive que esperar pela adolescência para poder bater o pé e recusar-me a assistir ao desfile de Carnaval. O preço dos bilhetes nem sequer era uma questão visto que o meu pai ajudava nas bilheteiras e tinha sempre alguns gratuitos para nós. Quando assim não era, a minha mãe conhecia umas pessoas que nos deixavam assistir na sua varanda, isto quando o desfile ainda passava pelo centro da cidade. Contudo, o meu profundo ódio a esta festa era tão grande que, durante anos, não mais voltei a ver o desfile.

Com a adolescência o Carnaval deixou de ser uma fantasia para passar a ser um pretexto para longas festas pela noite dentro. Não sendo uma pessoa popular no meu liceu, raras foram as vezes que recebi algum convite para sair durante a altura do Carnaval. Aí deixei de odiar o Carnaval, e passei a temê-lo. Temia-o não por medo de me tornar numa pária social, mas sim porque ser-se adolescente em Ovar significa que as tuas maiores hipóteses de começares uma relação concentram-se na altura do Carnaval.

Aquela rapariga de quem gostas mas que não sabes como abordar, depois de um qualquer Carnaval, estará certamente a namorar com alguém. Nem precisavas de esperar pelo fim das miniférias carnavalescas para o saberes. A novidade espalhar-se-ia directamente até ti. Era impossível lutar contra este destino. Eventualmente deixei de tentar. Não mais saí no Carnaval, não mais quis saber.

Quando finalmente deixei Ovar para trás, o Carnaval passou a ser algo secundário. Poucas eram as pessoas que o festejavam, embora houvesse algum interesse esporádico em conhecer a Noite dos Dominós, a mágica segunda-feira de Carnaval. Um ano inclusive, descobri mais tarde que um grande grupo de pessoas do meu curso veio a Ovar de propósito conhecer essa noite. Só me contaram passado alguns dias. Enfim.

Foi apenas em 2011 que a minha relação com o Carnaval mudou. Já com um grupo de amigos entusiasmado pelas festividades, e com a minha primeira relação estável, tudo indicava que essa noite de segunda-feira podia mesmo ser mágica. E assim foi.

Semanas antes juntámo-nos para planear os nossos fatos. Decidimos criar uma equipa de futebol americano, os Ovar Lions, e fantasiámo-nos a rigor com capacetes feitos de espuma e papel de jornal. Esse foi, de longe, o melhor Carnaval de sempre. Não me lembro de outra altura em que me tenha divertido tanto. A cidade parecia outra, o Entrudo tinha-se redimido. Não queria que aquela noite terminasse. De certa forma, ainda hoje a desejo.

Os anos seguintes tiveram os seus momentos, mas foi a noite de sábado que, inesperadamente, acabou por guardar os melhores. Foi assim de 2012 a 2014. Apenas nos voltámos a fantasiar em conjunto em 2012. Fomos à Rambo, mas com um fato comprado e um lança misseis de pressão de ar. Foi divertido, mas faltou a magia da originalidade, e de ser algo feito por nós.

Em 2014 nem sequer me fantasiei e acabei a noite a caminhar sozinho para casa, já de manhã, ao telefone com aquela que mais desejava ter ao meu lado.

Este ano, graças ao não feriado, e a um novo emprego, não pude sair na Noite Mágica. O meu Carnaval resumiu-se às noites de sexta-feira e sábado. Noites que terminaram mais cedo que o habitual. E assim, pela primeira vez em cinco anos, falhei uma segunda-feira de Carnaval.

Não gosto particularmente do Carnaval. Em Ovar são 40 dias. Demasiado tempo, demasiadas festas sempre com o mesmo tema de fundo. Para mim, chega o fim-de-semana que o antecede, e a Noite dos Dominós. Felizmente, este ano, dada a proximidade com o Natal, não foi muito mais que isso, embora numa qualquer noite de Janeiro fosse fácil cruzar-me com algum jantar ou festejo de um dos diversos grupos de Carnaval que a cidade acolhe.

O Carnaval não faz parte da minha identidade. Para mim, o Carnaval não é o desfile, não são os grupos, não é a música, não é a dança, nem a festa. Para mim, o Carnaval são as pessoas com quem o partilhamos. Um pretexto para nos fantasiarmos. Mais um motivo para uma festa entre amigos. Foi por isso que 2011 foi tão bom. Não pelo Carnaval, ou pela cidade, mas sim pelas pessoas que fizeram daquela noite uma das melhores que já vivi.

A minha relação com o Carnaval é, no mínimo, complexa. Não o aprecio, não anseio por ele. Não temo que ele volte a partir o meu coração. Mas tenho saudades daquela noite. Quero reviver cada momento. Quero mostrar o meu Dominó. Quero reencontrar a magia por entre as ruas de Ovar. Quero ser feliz. Quero mil e uma noites mágicas. Cada uma única. Cada uma especial. Cada uma, noite de Carnaval.

Thursday, February 12, 2015

O Apego da Solidão

Imagem DR
O tempo passa e com ele passa a dor. Pois tudo passa, até o amor. Na companhia de um bom livro e um violão, vou vivendo com a minha solidão.

Tudo Passa, Marjorie Estiano

Abres os olhos e acabaste de acordar. O sol não acaricia a tua face. O despertador ainda não tocou. Pela janela apenas vês nuvens. Mais um dia cinzento. Mais um dia, como outro qualquer. Por que acordaste tão cedo? Nem mesmo a preguiça te mantém desperto. Estás preso à cama. Sem vontade. Sem cansaço. Sem frio. Sem nada.

São mais os dias que acordamos assim. Sós. Isolados apenas entre os nossos botões. Os nossos pensamentos como única companhia. Sem um corpo quente ao nosso lado. Sem entusiasmo. Sem um motivo. São dias normais. Dias como outro qualquer. São estes os dias que precisas de começar a mudar. Os dias que precisas de começar a viver.

Aprender a viver com nós próprios. A gostar de nós. A ouvir o silêncio. A calar as vozes. Lições importantes e tão fáceis de negligenciar. É fácil depender de alguém. De nos agarrarmos ao apego, à rotina, aos lugares comuns, às nossas redes de segurança. É fácil, sim. Mas é também desprovido de qualquer sentido. É a apologia da preguiça intelectual. Do desafio do crescimento. O adiar do inevitável.

Lidar com a solidão começa por uma reviravolta de conceitos. Não devemos lidar ou combatê-la, mas sim refletir, compreender, aceitar e não deixar que esta nos consuma. O segredo está em sermos felizes connosco próprios. Em encontrar algo agradável nos pequenos pormenores do dia-a-dia. Nos momentos isolados. Nas horas apagadas que devemos ocupar.

Começa por refletir. Um caderno, uma caneta, um chá, ou um café. Um jardim, uma praia, ou um quarto. Um espaço confortável. Escreve se sentires essa necessidade. Desenha. Expressa-te. Pensa naquilo que gostas de fazer. Naquilo que queres fazer. Aquilo que queres melhorar em ti. Quem tu és. Quem podes ser.

Faz esse exercício as vezes que precisares. Interioriza esses desejos. Projecta o teu desafio. E age. Inscreve-te no ginásio. Nas aulas que tens andado a adiar. Cria a tua arte. Expressa-te. Investe em ti. Substitui algumas rotinas por algo mais imprevisível. Se trazes o teu almoço, experimenta comer noutro local. Sai do refeitório e procura um banco de jardim. Faz o caminho mais longo em vez de correres para casa. Desliga a televisão e lê. Levanta-te do sofá e vai conhecer a tua cidade. Troca aquela noite passada online por uma peça de teatro, uma ida ao cinema, ou um concerto. Torna os teus fins-de-semana especiais com aquilo que o Universo deixa ao teu dispor.

Em tempos disseram-me para ir aos locais que mais amo. Aos espaços com que mais me identifico. É lá que te irás encontrar. É lá onde se encontra a resposta.

É fácil confundir amor com apego. Mas são duas coisas bem diferentes. Recentemente vi uma entrevista de Jetsunma Tenzin Palmo, uma monja budista, e um ser-humano extraordinário, em todos os sentidos desta palavra. Nela Jetsunma expõe a sua visão sobre a vida. Mas o vídeo que mais me chamou à atenção foi aquele que diferencia o amor romântico, o apego, do amor genuíno.

Deixarmo-nos consumir pelo apego é um passo na direcção errada. É a negação da individualidade. O forçar de um sentimento que não é real. Um sentimento que não é genuíno. Jetsunma, apesar do seu impronunciável nome, é bastante clara na distinção entre amor e apego. Apego exige a presença constante de alguém. É intenso. E desaparece com a velocidade com que surge. Já o Amor aceita a individualidade de alguém. Admira a sua pessoa. A beleza do seu ser, e do sentimento que ambos partilham. Amar é compreender. Amar é ser feliz com a felicidade do outro. Amar é deixá-la partir. Amar é deixá-la voar.

Para aprendermos a viver com a solidão, devemos amar-nos a nós próprios. Um velho cliché. Uma frase feita. Uma afirmação verdadeira. Uma necessidade primordial. Para amar, devemos desligar-nos do simples apego, compreendê-lo e saber distinguir um sentimento do outro. Para amar, devemos estar dispostos a libertar. Não apenas aquela a quem nos entregamos, mas também as amarras que prendem o nosso coração. Que bloqueiam a nossa felicidade. Que nos impedem de agir.

Não é fácil estar só. Não é fácil viver apenas das conversas que partilhamos entre o silêncio da nossa mente. Não é fácil. Mas é necessário. É necessário aprendermos a viver connosco próprios. A gostar de nós. A combater a inércia. A perturbar a rotina. Só assim podemos crescer. Só assim nos podemos conhecer. Só assim podemos ser alguém que não nos desilude. Alguém capaz de amar. Alguém capaz de ser amado.

A confiança, a vontade, o desejo de nos expressarmos, esconde-se por entre os degraus de um longo caminho de autodescoberta. De crescimento constante. De amor por aquilo que faz de ti quem tu és. Quem tu podes ser. Aquilo que te torna único. A beleza do silêncio interrompido pela tua própria determinação.

Abres os olhos e acabaste de acordar. O sol não acaricia a tua face. O despertador ainda não tocou. Pela janela apenas vês nuvens. Mais um dia cinzento. Já estás a pé. Pronto para agarrar os inesperados encantos que este dia tem para oferecer.