Thursday, October 23, 2014

Os Meus Favoritos

Imagem DR
Numa ocasião ouvi um cliente habitual comentar na livraria do meu pai que poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que realmente abre caminho até ao seu coração.
Carlos Ruiz Zafón

O mais desatento utilizador das redes sociais já deve ter tropeçado em uma das últimas tendências, cuja popularidade já assumiu um lugar de destaque na nossa timeline. Estou a falar dos desafios, das listas, e dos pedidos de jantares que ficam sempre por oferecer.

Estas listas não são, em si, novidade. Já mesmo na distante “pré-história” em que nos limitávamos a comunicar por e-mail, e eventualmente em alguma chatroom guardada por Vladimirs com pouco sentido de humor, estas listas circulavam em cadeia. Algumas em forma de questionário que, além dos livros, álbuns, e filmes preferidos, nos pediam para listar aspectos da nossa personalidade e história pessoal, outras de forma mais aberta em salas de conversação públicas.

Tal como hoje, este era um bom método para “quebrar o gelo”. A descoberta de alguma característica ou interesse comum, servia como o pretexto ideal para iniciar uma conversa, fomentar uma amizade, ou até mesmo para alimentar as probabilidades desta partir para algo mais.

E, mesmo que isso não acontecesse, esta partilha de informação permitia também que diversos livros, filmes e bandas passassem de desconhecidas, a objectos de culto, ou de adoração popular.

Uma das minhas memórias mais antigas de resposta a um desses questionários, levou-me à descoberta do filme Donnie Darko. Isto apenas porque a pessoa tinha deixado na última questão uma simples referência que, não fosse a minha curiosidade, de outra forma podia passar por despercebida. A pessoa em questão oferecia um jantar a quem fosse capaz de perceber o significado por trás da palavra “Cellar door” (“porta da cave” em Inglês).

O jantar em si não me oferecia qualquer espécie de motivação, contudo, o facto de não conhecer aquela referência atormentou-me. Uma breve pesquisa levou-me até ao filme. Relembro que isto foi já há dez anos, e na altura não só a velocidade da internet era bem mais lenta, como os motores de busca não eram tão eficientes como o são hoje. Mesmo assim, foi com pouca dificuldade que descobri a origem daquele pedido.

Não tardei em ver o filme. Embora esteja longe de alguma vez figurar na minha lista de top dez, ou vinte, acabou por ser uma agradável surpresa que nunca teria descoberto, não fosse por influência deste questionário, e da própria pessoa que o respondeu.

Salvo um caso ou outro, não tenho prestado muita atenção às listas que os meus contactos têm partilhado ao longo das últimas semanas. Em alguns casos por não me rever em nada daquilo que eles listam, em outros pelas óbvias opções que já esperava que fossem partilhadas. Contudo, confesso que alguns álbuns e livros que despertaram o meu interesse, já se encontram em lista de espera para serem ouvidos, lidos, ou ambos, quem sabe.

Por falta de sorte, até ao momento apenas me desafiaram para fazer uma lista dos meus dez álbuns preferidos, e para publicar uma foto da minha infância. Embora o nível de dificuldade seja idêntico em qualquer lista que me peçam para fazer, pessoalmente, gostava de ser desafiado para listar os meus dez livros preferidos. Tal como aconteceu com os álbuns, suspeito que teria que inevitavelmente recorrer às Menções Honrosas para não deixar nenhum livro importante de lado.

É difícil listar aquilo que mais gostamos. Muito mais ainda é hierarquizá-lo. Se com a música por vezes o problema prende-se entre a força que uma faixa isolada tem para nos mover, quando as restantes não o conseguem, e a generalidade da qualidade de uma obra completa, com os livros a questão é ainda mais complexa.

É possível comparar o One Day do David Nicholls, com o A Gaia Ciência de Nietzsche? O Código Da Vinci, com o The Stand? Ou o Caim com o Livro do Desassossego? Os critérios são, por não o poderem ser de outra forma, arbitrários, pessoais e únicos a cada um. Ao momento que os leu, aos sentimentos que o livro lhe transmitiu, às pessoas que o aconselharam, ao tempo que fazia no dia que o comprou. Enfim, mil e um factores, mil e uma opiniões.

Ao partilhar a nossa lista não nos estamos a livrar de um jantar que não queríamos oferecer. Estamos sim a expor as nossas experiências, as nossas histórias, os nossos gostos. Apresentamos parte de nós ao universo da nossa timeline. Fazemo-lo sem consciência, na esperança da sua aceitação, ou com vontade de descobrir alguém com quem partilhamos tanto em comum.

Como todas as modas, esta cedo não tardará em desaparecer. Aproveitem-na para partilharem conhecimento. Para descobrirem novas artes. E para conhecerem melhor quem todos os dias vos acompanha por entre os zeros e uns desta virtualidade em rede.

Thursday, October 16, 2014

Estrelinhas de Fátima

Estrelinhas de Fátima, Foto: Adriano Cerqueira
Algumas viagens valem, não pelo destino, mas sim por aquilo que nos espera quando lá chegamos. São os pequenos pormenores que nos movem. Que aceleram aquele primeiro passo. Que nos fazem saltar da cama, ansiosos pelo dia que temos pela frente. Uma viagem é uma companhia, um caminho, um desvio, um obstáculo, um mapa, um destino, um pormenor. Uma Estrelinha de Fátima.

Este é o primeiro Outono em nove anos cuja chegada não é sinónimo de uma nova temporada de How I Met Your Mother. Os fãs da série que, como eu, ainda estão a remoer o inesperado final que este Março nos ofereceu, recordam-se das longas viagens ininterruptas de Ted e Marshall até Chicago, com o único objectivo de comerem uma Pizza do Gazolla’s.

Uma Pizza não muito diferente de uma outra qualquer, que, no momento a seguir à provarem, fá-los questionar se aquela longa viagem teria valido a pena. Contudo, eles continuam a lá regressar, ano após ano, pelo mesmo motivo. Não o fazem pela Pizza, mas sim pela viagem, pelos momentos que partilham, pelas memórias que cimentam a sua amizade, e pelas inevitáveis peripécias que acabam por colorir o seu percurso.

Todos temos a nossa Pizza do Gazolla’s. Seja ela a melhor francesinha, o Hambúrguer gigante, aquele restaurante Mexicano, ou aquele bolo de chocolate que não mais conseguiste replicar. Para mim, são as Estrelinhas de Fátima da pastelaria Milano. Esta está longe de ser a primeira vez que escrevo sobre elas. Talvez o faça pelas memórias de infância que as acompanham, pelas histórias que trazem envoltas em cada pedaço deste pequeno doce de ovos com amêndoa e açúcar, ou pelo inigualável sabor que lhes é tão característico.

O misticismo em volta desta quase desconhecida iguaria é reforçado, em parte, pela sua raridade. Especialidade única desta pequena pastelaria, são elas também espécies ameaçadas, cuja subsistência irá depender da longevidade deste estabelecimento, da qualidade da sua confecção e da receita, aí guardada em segredo.

Desde pequeno que Fátima é sinónimo de Estrelinhas. Bom, Estrelinhas e Pegadas de Dinossauro, mas isso é outra história. Todos os anos ansiava pela habitual viagem até ao Santuário com o único propósito de as provar. A longa e cansativa viagem, e o tédio inconsequente do dia era compensado por os pequenos momentos de prazer que este pequeno pormenor me proporcionava.

Trazia sempre algumas para casa, mas dada a natureza deste doce, o melhor é mesmo comer na hora. Esta semana tive a sorte de me oferecerem algumas. Há já alguns anos que lá não regresso, e nas poucas vezes que o fiz, nem sempre encontrei a pastelaria aberta, ou então perdi-me à sua procura.

Começo a perceber que as Estrelinhas de Fátima têm uma vontade própria e que nem sempre se deixam revelar. Nem sempre uma viagem tem o sucesso de nos levar até ao destino que tanto desejávamos, mas, por vezes, esse resultado é aquele que mais precisávamos naquele momento.

Vejo quase como uma missão a necessidade de as divulgar. De tornar este desconhecido deleite popular entre aqueles que apreciam a boa gastronomia portuguesa. Contudo, temo também pela banalização de algo que me é tão próximo, e tão valioso. Pois, pudesse eu comer uma Estrelinha todos os dias e talvez a ignorasse, como faço com os Pastéis de Nata, e vulgares croissants.

A viagem, a raridade, o misticismo, o sabor, as memórias, a sua História. São estas coisas que fazem as Estrelinhas de Fátima únicas. São estes pormenores que fazem delas especiais. É tudo isto que me faz escrever sobre elas. É tudo isto que faz com que elas valham a pena.

Se passarem por Fátima, seja em peregrinação, ou apenas de passagem, dêem um salto até à Pastelaria Milano. Provem. Saboreiem. Julguem-nas de vossa justiça, e sigam o vosso caminho. Seja ele qual for, até às vossas Estrelinhas particulares. Já as minhas, encontram-se aí. Apenas aí.

Tuesday, October 14, 2014

Mais Uma Vez, Anathema

Anathema, Hard Club (Porto); Foto: Adriano Cerqueira
In a lifetime there's a moment to awaken to the sound of your heartbeat unbroken. 

The Lost Song (Part 2), Anathema

Hoje compreendo porque precisava de lá estar. De os rever. De os ouvir. Ao longo dos últimos anos os Anathema têm sido a minha constante. A cada dois anos eles visitam o Porto, e eu estou lá, nas primeiras filas, a sonhar.

Desta vez fiquei à frente, junto às grades, quase que lhes podia tocar. Eram enormes. Gigantes. Eu era apenas um rapaz com uma t-shirt do Unknown Pleasures, já sem voz ao fim das primeiras músicas. Que saltou mais que em qualquer sessão de Insanity.

Danny Cavanagh
But we laughed, and we cried. And we fought, and we tried. And we failed. But I loved you.
Anathema, Anathema

Mais uma vez, Anathema. Há alguns meses que não os ouvia. Não como antes. Desliguei-me. Rara era a música que não me contaminava com um profundo sentimento de desolação. Nada neles tinha mudado, mas sim em mim. As músicas eram as mesmas, a melodia, o ritmo, os acordes, as letras. Mas eu não as ouvia, não da mesma forma.

Há um ano ansiava por um concerto. Uma necessidade tão forte, como a primeira lufada de ar após um longo mergulho. A promessa de um novo álbum adivinhava um regresso à Invicta, confirmação que não tardou a ser anunciada. 11 de Outubro. Ainda a meses de distância, desmarquei a minha agenda para essa data. Fiz planos. Imaginei o concerto ideal. Sonhei com uma história que não cheguei a escrever.

Mas a abrupta travagem da realidade despertou-me. Ignorei o novo álbum durante semanas e, quando finalmente o ouvi, distraí-me, incapaz de perceber, de sentir, de me deixar envolver em qualquer uma das músicas. Percebi as letras que pensava ouvir, e não aquelas que cantavam. Atirei-o para um virtual esquecimento e desliguei-me.

Por meses, desliguei-me. A data permanecia marcada mas distante. Intocável. Inexistente. Era Outubro. Acordei. Não queria ir. Não fazia sentido ir. Nem o próprio Luís que desde 2008 sempre me acompanhou neste concerto, tinha vontade para ir. Contudo, havia uma voz que me movia. Uma voz que dizia que eu precisava de estar naquela sala. As semanas passam como dias. Deixas algo para amanhã, o tempo passa, os anos também, e esse algo fica por se concretizar.

Vincent Cavanagh
And you're free now and I will remain still dreaming. Alive and aware of the love that I once believed in.
The Lost Song (Part 2), Anathema

Não podia deixar que isso voltasse a acontecer. Cheguei ao Hard Club e uma longa fila aguardava. Teria chegado tarde demais? Faltavam ainda alguns minutos para as nove da noite. Seria possível que já não houvesse bilhetes?

A longa fila era composta na sua maioria por adolescentes, sem qualquer semelhança com os fãs de Anathema a quem já me tinha habituado. Fui para o fim da fila e perguntei a um rapaz se esta era a fila para a bilheteira, o seu não deixou-me algo confuso. Nos últimos dois anos mudaram o local da bilheteira para uma pequena montra na sala dois do Hard Club. Tapada pela longa fila de adolescentes era fácil passar despercebida. Além do concerto, reservado para a sala um, estava também marcado um encontro de Youtubers, que explicava a presença daquela multidão invulgar. Comprei o meu bilhete e dirigi-me para a sala do concerto.

Antes de entrar dei uma olhadela pela habitual tenda de merchandise. Vendiam alguns álbuns autografados. O Distant Satellites já tinha esgotado, e a ideia de comprar o CD já autografado retirava a magia de conseguir os autógrafos por mim e de conhecer a banda pessoalmente.

Quando entrei na sala os Mother’s Cake já se preparavam para actuar. A banda de abertura tinha uma energia positiva e interagia bem com o público. As vocals deixavam algo a desejar, mas mostravam ter algum talento. Isso e o cabelo do baterista, a lembrar o Sr. Coisa da Família Addams, deram para uma primeira hora agradável em antecipação do prato principal.

Esmiuçava por entre a multidão à procura de alguém conhecido. Na viagem de comboio para lá encontrei uma amiga do secundário emigrada no Luxemburgo que, embora já os tivesse visto lá há duas semanas, quis rever os Anathema, agora com um público mais animado. Apesar da sua companhia, não era raro encontrar alguém conhecido por entre a multidão, por vezes, até mesmo pessoas que desconhecia serem fãs da banda. Contudo, confesso que não era por esses inesperados conhecidos que os meus olhos procuravam.

Fomos para a frente, junto à grade. A meros centímetros do palco. Sentia-me capaz de o tocar. Foi breve a espera. Quando eles entraram, um a um em palco, foi como se tivesse enfim despertado de um sono profundo que há muito se alongava. Vivi cada música como se fosse a primeira vez que a ouvia.

Lee Douglas
I feel you outside at the edge of my life. I see you walk by at the edge of my sight. I had to let you go to the setting Sun. I had to let you go and find a way back home.

Untouchable (Part 2), Anathema

Deixei-me encantar pelas duas primeiras partes de The Lost Song. Seguidas pela Untouchable, numa dança perfeita entre duas almas que se completavam. Apaixonei-me pela Anathema, a faixa homónima da própria banda. E finalmente descobri, pela boca do próprio Vincent, como é pronunciada esta palavra.

O público pedia por músicas antigas. O homem que se encontrava ao meu lado com o filho, desejava por um concerto de seis horas. A este pedido o Danny engasgou-se na sua cerveja e apontou para o Vincent dizendo, “You know he’d have to sing that shit?”. “Maybe next time we’ll just give you some drugs and play a regular concert and you’ll think it was six hours long.”

A interacção com o público foi constante e energética. Como uma reunião entre velhos amigos que mesmo após dois anos de ausência, continuam a tratar-se como se ainda ontem se tivessem encontrado.

Após o inevitável encore, chegaram algumas das velhas músicas que os fãs há muito desejavam. A Natural Disaster encantou-me como sempre, mas mesmo uma música ouvida incontáveis vezes pode surpreender-nos. A Lee. Sempre a Lee. A forma como prolongou o final da Natural Disaster ainda hoje me dá arrepios. Fiquei colado à sua voz até ao fim. Queria fotografar, guardar o momento de alguma forma, mas fazê-lo apenas iria impedir-me de viver intensamente cada segundo de algo tão raro, e tão belo.

A Fragile Dreams. Acordei como uma incomum vontade de a ouvir. Quando a começaram a tocar, cada fibra do meu corpo ganhou uma nova energia. Senti-me tão vivo. Envolto por um profundo sentimento de felicidade, e uma renovada confiança na minha relação com os Anathema.

Quando terminaram, era hora da habitual troca de memorabilia. A Lee tentou lançar uma das set lists para o público mas falhou. O Jamie dobrou-a num avião e atirou-a na minha direcção, apanhei-a e fui envolto por mãos desejosas, mas incapazes de a agarrar. Cá fora encontrei o baterista, Daniel Cardoso, cumprimentei-o por mais um grande concerto e pedi-lhe que me assinasse a set list.

Anathema
And one day you'll feel me. A whisper upon the breeze. And I'll watch you stand there unafraid. And I'll speak to you silently, and know that you'll hear me. The feeling is more than I've ever known.
The Lost Song (Part 2), Anathema

Antes de correr para apanhar o comboio ainda estive alguns momentos à conversa com o Vicent. Fiquei preso às suas palavras enquanto ele descrevia o processo criativo do grupo. Como cada um pode trabalhar numa música em separado e sair algo diferente, e como a banda, embora não se esqueça dos primeiros álbuns, tem evoluído para um caminho que os agrada ainda mais.

Por fim, conheci a Lee, tirei duas fotos com ela e trocámos uma breve impressão sobre a qualidade da Super Bock que ela trazia. Na viagem de regresso a minha face foi sequestrada por um sorriso de orelha a orelha. Já não me recordo da última vez que fui tão feliz.

Passaram-se horas até me aperceber que não tocaram a One Last Goodbye. Não foi necessário. Esta set list era perfeita no seu conjunto, na forma como cada faixa se completava. Não senti a sua falta, nem a de outra música qualquer.

Fiz as pazes com uma banda da qual nunca me distanciei. A cada concerto que vou sinto o quanto eles evoluíram, e como eu evoluo com eles.

Mais uma vez, Anathema. Sempre Anathema.