Monday, July 14, 2014

O Lego Amarelo

Foto DR
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…

Alberto Caeiro, em “O Guardador de Rebanhos”

Há dias que acordamos com um profundo sorriso a iluminar a nossa manhã. O sol brilha através da janela, deixamo-nos envolver pelo seu calor, e por uma energia indescritível que nos move para sair da cama. Dias em tudo idênticos a um outro qualquer, mas que nos abraçam por uma onda imparável de optimismo.

O nosso andar ganha um ligeiro toque de dança, a nossa face transpira confiança, e as pessoas com quem nos cruzamos não conseguem deixar de esboçar um sorriso, ou de nos abordar com um alegre “bom dia”.

Para mim, um desses dias aconteceu a nove de Janeiro. Uma quinta-feira como qualquer outra. Talvez movido pelo entusiasmo e pela ansiedade da viagem que ia fazer no dia seguinte. Talvez apenas por se tratar de uma manhã calma banhada por um morno Sol de Inverno. Acordei envolvido por uma forte e constante brisa de energias positivas. Um sentimento reflexo na minha face, e na de todos aqueles que se cruzaram no meu caminho.

Todas as manhãs desloco-me a pé para o trabalho. Um percurso que me demora entre quinze a vinte minutos. Há já alguns meses que comecei a ir pelo caminho mais directo, em constante descida, evitando assim a preguiça de aguardar pelo elevador de Santo André.

Embora o elevador me permita vislumbrar parte da paisagem da Serra, prefiro fazer o outro caminho. Escondido por entre algumas vielas em paralelo, esta rua pouco conhecida e quase inacessível para os carros, é um atalho que me oferece um ligeiro conforto no meu rotineiro destino matinal.

Guardado por um mural pintado com uma representação da cidade, envolto por umas esguias escadas que contornam uma capela em granito, este caminho leva-me pelas traseiras de uma despida Galeria Comercial. Ao lado da mesma, quase no fim da rua, encontro uma escola.

Pelas vozes agudas, pelos cânticos e risos de crianças, que nunca vejo, presumo que se trate de uma Escola Primária, algo camuflada por entre os edifícios desta escarpa. Nessa manhã, não me recordo de ouvir o típico alvoroço das brincadeiras de recreio, nem tão pouco dos alegres desconhecidos que se cruzaram comigo. Mas houve um pequeno pormenor que chamou a minha atenção.

Por entre a rua de paralelos, a brilhar através dos interstícios do granito, estava uma peça de Lego. Um pequeno tijolo amarelo de quatro encaixes. Uma das peças mais comuns que podemos encontrar. Parei para o observar. Estava sujo e um pouco gasto numa das faces, mas fora isso, era perfeito.

Olhei em volta para ver se encontrava a criança a quem aquela peça pertencia, mas estava só naquela viela. Pelo acumular de detritos à sua volta, fiquei com a sensação que este Lego já ali se encontrava há alguns dias. Limpei-o e trouxe-o comigo.

Não me lembro de mais nada sobre o resto do dia. Apenas aquele momento guardo com o máximo de pormenor. Esta quinta-feira, pela simples onda de optimismo que me despertou, tinha já para si reservado um espaço nas minhas memórias. Mas este pequeno pormenor. Este momento que quase me passou ao lado, tivesse eu escolhido ir pelo elevador, fez com que lhe desse o nome do “dia em que encontrei um Lego amarelo”.

Hoje guardo-o no meu quarto, juntamente com outros objectos recheados de simbolismo. São curiosas as coisas que se cruzam no nosso caminho. De tão efémeras passagens, que o mais minúsculo pormenor nos pode desviar do seu encontro.

O anúncio de emprego que encontramos no twitter. As pessoas que conhecemos quando não queríamos sair de casa. Um “olá” dividido por entre umas escadas passageiras. O avião perdido. O encontro adiado. A peça de Lego que encontramos no chão.

Coincidências. Destino. Caos. A beleza do acaso que aprendemos a apreciar quando olhamos à nossa volta, e encaramos o imprevisto que o dia nos tem para oferecer.

Tuesday, July 08, 2014

Máscaras Virtuais

Imagem DR
Máscaras, todos as usamos.
Faces feridas encobertas,
Desgostos, disfarçados de sorrisos.
Mentiras, perdidas em desenhos.

Carnavais das nossas vidas,
Dias extras que não vivemos,
Tudo escondido por detrás,
De todo um emaranhado que se desfaz.

XIV, Adriano Cerqueira

Todos usamos máscaras. Escudos que nos protegem das adversidades do dia-a-dia. Do chefe inconsequente que não valoriza a nossa opinião, do cliente mal educado que pensa ter sempre razão. Do empregado que se engana no nosso pedido, da vizinha pronta a encontrar o mínimo motivo de coscuvilhice. Daqueles que nos magoam, que nos irritam, ou que nos maltratam. Todos usamos máscaras.

Mecanismos de defesa que, com alguma astúcia podem jogar a nosso favor. Usamos máscaras para esconder a dor, a indignação, o ódio, o irracional. Mas também as usamos para reconstruir quem somos para os outros. Para conquistar a confiança de alguém, para esconder os nossos defeitos, para ganhar respeito entre os nossos pares, para seduzir quem desejamos. Todos usamos máscaras.

A ascensão das redes sociais, a ténue linha dúbia que mistura o público com o privado, veio acentuar esta necessidade de alimentação das diversas máscaras que possuímos. Recentemente encontrei o vídeo What’s on your mind?, realizado por Shaun Higton. Durante dois minutos e meio somos transportados para a dicotomia real/virtual de Scott Thomson, alguém não muito diferente de cada um de nós. Neste vídeo vemos o contraste da sua vida real, com a máscara de positivismo que ele alimenta no seu perfil do facebook.

Da comida pré-congelada, a uma relação fria condenada ao fracasso, ao emprego cinzento que o faz ser despedido. Da depressão que o assola, até à sua profunda solidão. Scott usa as redes sociais para transmitir a imagem oposta, em busca da aprovação dos seus amigos virtuais. Contudo, por mais likes que as suas publicações recebam, a realidade mantém-se inalterada, ele está, e assim continua, só.

Os últimos tempos têm sido férteis em campanhas com um simples objectivo: desligar. Desliguem o telemóvel. Desliguem o facebook. Olhem à vossa volta. Falem com um estranho. Não percam as oportunidades que desvanecem sempre que o nosso olhar fica colocado a um pequeno, ou a um grande ecrã. Mensagens fortes. Mensagens úteis. Mensagens necessárias. Ignoradas tão rapidamente como qualquer outro vídeo viral.

A cada dia que passa cresce o culto da aprovação virtual. Tudo o que fazemos é exposto, partilhado, identificado, visto e gostado. Procuramos chegar ao máximo de pessoas possíveis, com o prato acabado de cozinhar, a tarde passada na praia, a festa que visitámos, a viagem que fizemos. Fazemo-lo para nós, para os outros, para registo, para reconhecimento. Fazemo-lo porque sim. Porque o botão “finalizar”, confunde-se com o botão “partilhar”. Fazemo-lo porque já não sabemos ter experiências que não possamos partilhar com a nossa rede de contactos. Contactos que muitas vezes não passam de desconhecidos com quem nunca trocámos uma única palavra. E mesmo assim continuamos a fazê-lo. Não porque nos satisfaz, mas sim por não querermos ser ignorados, por não querermos ser apenas mais um numa longa linha do tempo repleta de futilidade.

Queremos ser a excepção. Queremos ser o destaque. Queremos a popularidade, a fama. Queremos ser diferentes. Mas também não queremos ficar para trás. Queremos visitar, fazer, e ter tudo aquilo que é cool, tudo aquilo que é moda, tudo aquilo que é partilhável. Tudo aquilo que os outros partilham virtualmente.

Queremos viver nesse Universo, onde todas as pessoas estão a sorrir nas fotos, onde todas as refeições parecem pratos gourmet, onde a vida de todos é alegre, sem discussões, sem dificuldades, e onde todos os seus sonhos lhes são oferecidos de bandeja. Queremos viver nesse mundo de ilusões e de máscaras. Construímos a nossa própria máscara para nos sentirmos integrados, para fazermos parte do grupo. Para que “gostem” de nós.

Contudo, nós não somos essa máscara. Nós somos o Scott. Temos momentos altos, e baixos. Dias alegres, e tristes. Somos felizes, discutimos. Sofremos de depressão, e euforia. Temos amigos, estamos sós. Somos únicos, temos defeitos. Somos iguais a nós próprios, e não às máscaras que nos tentam impingir.

Desliguem. Encerrem a sessão. Desliguem. Bloqueiem a vossa conta. Desliguem. Sejam livres. Desliguem. Sejam únicos. Desliguem. Não há foto mais bela, que aquela tirada sem intenção. Não há momento mais belo, que aquele que não precisamos de partilhar. Não há pessoa mais bela, que aquela que não tem medo de ser igual a si mesma.

Não há máscara mais bela, que aquela que não precisamos usar.