Tuesday, June 24, 2014

True Faith

True Faith, Foto: Adriano Cerqueira
I used to think that the day would never come,
I'd see delight in the shade of the morning sun.
My morning sun is the drug that brings me near,
To the childhood I lost, replaced by fear.
True Faith, New Order

Cada objecto conta uma estória. Do fabrico, à aquisição, do seu passado, e das pessoas que o tornaram possível, ao seu presente, e àqueles que perpetuam as suas qualidades. Hoje trago-vos a história de algo que transita do plano do etéreo e do abstracto, para a realidade física apenas através de suportes analógicos ou digitais. Estou a falar de música. Estou a falar de New Order. Estou a falar da True Faith.

Produzida por Stephen Hague em 1987, True Faith é um dos singles mais populares dos New Order. Reeditada em 1994 e 2001, esta música chegou a estar em quarto lugar nos Tops do Reino Unido no seu ano de lançamento. Popularizada em filmes como American Psycho, ou Bright Lights, Big City, esta faixa foi ainda alvo de covers por bandas como The Wombats ou Anberlin.

Esta foi das primeiras músicas dos New Order com as quais tive contacto. Embora ela nunca tenha sido editada num dos álbuns regulares de New Order, apareceu em algumas compilações como o Substance, The Best of, International, Singles e Total.

Com uma letra tão abstracta como o seu vídeo, é difícil encontrar um sentido real para os versos que a compõem. Como era hábito na altura, o título não surge em qualquer momento da música, e parece de certa forma, desligado do conteúdo e da mensagem que esta transmite.

A interpretação mais comum da letra, retrata a história de um toxicodependente, viciado em heroína, arrependido pela infância que perdeu, e pelas pessoas que a sua dependência afastou. Pessoalmente, prefiro vê-la como um grito à esperança de um futuro livre. Limpo das amarras de um passado repleto de arrependimentos.

Fascinado pela música, pelos seus ritmos positivos, pela ambiguidade da letra, e pela aleatória originalidade por detrás da arte que compõe as suas diversas encarnações, ainda antes de adquirir qualquer álbum dos New Order, procurei efusivamente por este single.

Foi apenas em Setembro de 2004 que desisti de procurar no mercado nacional. Em menos de cinco minutos encontrei o single que há tanto procurava na loja britânica da Amazon. Nunca tinha feito uma compra online, e tinha algum receio que algo pudesse correr mal. Contudo, tal não aconteceu e tive apenas que esperar algumas semanas para o ter. Ao longo dos anos, coleccionei várias versões desta música, quer em Single 7”, Maxi Single 12” e mesmo uma colectânea de remixes, da qual confesso não ser grande fã.

À excepção do single em CD, todas os restantes elementos da minha curta colecção foram comprados em segunda mão. Pela qualidade dos mesmos, quer da capa, quer do próprio disco, presumo que estes pertenciam a pessoas que tinham cuidado com os seus vinis. Se o faziam por gosto, por lhes darem pouco uso, ou por serem donos de lojas com stock para liquidar, não o sei dizer ao certo. Contudo, por vezes encontro-me a pensar sobre as histórias que estes discos escondem. Por quantas mãos passaram. Quem os ouviu e em que situações. Terão assistido ao nascimento de romances? A festas de arromba? Será que foram partilhados entre amigos, ansiosos por descobrir uma música nova? Quantos se sentiram desiludidos? Quantos se apaixonaram?

A True Faith é uma peça estruturante da minha colecção de música, quer em vinil, quer em CD. A sua arte de capa é icónica, e uma das minhas preferidas. Durante anos usei-a como avatar do MSN Messenger, assim como em outras redes sociais. A música em si é parte de mim. Da mesma forma que as diversas versões que hoje possuo são parte integrante da minha memorabilia de New Order.

Cada objecto conta a sua estória. As que viveu e aquelas que o futuro ainda lhe reserva. Esta não é a história de um CD, de um vinil, ou de um mp3. Esta não é a história de uma música, de uma banda, ou de um fã. Esta é a história da True Faith. Esta é a minha história.

Thursday, June 12, 2014

Ser Europeu

Foto DR
Progress, far from consisting in change, depends on retentiveness. When change is absolute there remains no being to improve and no direction is set for possible improvement: and when experience is not retained, as among savages, infancy is perpetual. Those who cannot remember the past are condemned to repeat it.

George Santayana

Que significa ser Europeu? Viver num continente livre, seguro, com oportunidades de crescimento e desenvolvimento pessoal. Partilhar o berço de grandes civilizações, da cultura, da arte, da sociedade, e da ciência. Caminhar por ruas históricas, ao lado de muitos dos grandes génios que a Humanidade já conheceu, e tratá-los como pares. Estar no centro onde tudo acontece. Ser Presente e ver a História a desenrolar-se à nossa frente, e por baixo dos nossos próprios pés.

Que significa ser Europeu? Para dois terços dos portugueses parece significar muito pouco. Dois terços que podem atravessar fronteiras sem passaportes, sem vistos, sem revistas obrigatórias, ou qualquer tipo de justificação ao Estado. Dois terços que podem trabalhar em qualquer país membro da União Europeia, e lá residir. Dois terços que podem usufruir dos serviços de saúde, segurança social e de apoio ao emprego, em qualquer um desses estados, e serem tratados como cidadãos nacionais.

Dois terços livres. Dois terços de abstenção. Dois terços de alienação. Dois terços de indiferença. Dois terços que gostava de ouvir. Dois terços que optaram por não ter voz. Dois terços que não passam de mais um número vazio, sem qualquer significado ou influência. Apenas dois terços, que jamais serão mais que isso.

O que motiva alguém a ser não mais que uma estatística? O que faz alguém abdicar da sua voz? Das suas ideias? Do seu apoio? Ou do seu protesto? O que faz alguém esquecer os seus deveres, e ignorar os seus direitos?

Gostava de os ouvir. Cada voz. Cada justificação, dos mais de seis milhões de portugueses que optaram por ficar calados nas últimas eleições europeias. Quero ouvir os emigrantes que não se informaram junto dos seus consulados. Os estudantes, e trabalhadores deslocados que não votaram por correspondência. Os anti-sistema que não sabem que um voto em branco é mais poderoso que qualquer abstenção. Os alienados que passaram o dia na praia, porque tudo está bem, e o calor até está a voltar.

Gostava de os ouvir a todos. Gostava que na sua incapacidade de se justificarem, fossem capazes de se aperceber como erraram. Gostava de os ver tomar a decisão de não o voltar a repetir. Mas acima de tudo, gostava de os ver a votar nas próximas eleições.

Se nenhum partido se identifica com as vossas ideologias. Se nenhum candidato vos transmite confiança. Se estes usam assuntos internos como bandeira de voto, ignorando os temas que realmente têm que ser discutidos. Se não se sentem representados pelos vosso Governo. Votem em branco.

Os votos em branco são votos de protesto, mas acima de tudo, são votos úteis. Uma maioria de abstenção, ou de votos nulos, nada vale. São apenas uma estatística, jargão técnico, curiosidades, e pouco mais. Uma maioria de votos em branco significa uma nova eleição, com candidatos diferentes. Com ideias diferentes. Força os partidos a mudar os seus rumos, e a discutir as ideias que realmente importam.

Ser Europeu é participar. É ter uma voz. É saber usá-la. Protestar. Apoiar. Defender as vossas próprias ideias, ou aquelas de quem admiram. Mas acima de tudo, ser Europeu é ser livre.

Dêem valor à vossa liberdade. Usem-na. Votem. Participem nas decisões que moldam o vosso futuro. Não se deixem liderar por uma minoria que soube aproveitar-se da vossa alienação para crescer e ganhar o poder.

Aproveitem os próximos cinco anos para viajar. Conheçam os vossos colegas europeus. Leiam sobre os restantes vinte e sete membros da União Europeia. Os seus problemas, a sua História, a sua cultura, os seus desejos, os seus sonhos. Aprendam com eles. Criem as vossas próprias ideias sobre que futuro querem para a Europa. Cresçam em conjunto. Sejam solidários. Sejam Europeus.

A História conta-nos diversos episódios em que a alienação generalizada, e a ascensão de minorias extremistas, passaram a governar o coração dos Europeus. Nenhum desses episódios teve um final feliz. Não deixemos que a História se repita, porque optámos por ficar em silêncio, quando nos pediram para falar.

Wednesday, June 11, 2014

O Legado de uma Linguagem Extinta

Imagem DR
Há uma linguagem em extinção. Uma série de códigos, abstracta e autónoma que, tão depressa como surgiu, enfim desvanece para o esquecimento. Uma morte tão silenciosa como a sua própria origem. 

A ascensão das redes sociais ditou o fim do anonimato, das chat rooms, do IRC, da linguagem SMS e dos códigos que a acompanhavam. Há quanto tempo não vêem a expressão “de onde teclas”? Questionar a idade, a localização ou a aparência de alguém, deixou de ser rotina, para passar a mera redundância. 

Não nos escondemos por trás de alcunhas, de tipos de letra arcaicos, ou de avatares. Estamos ali, sempre presentes, iguais a nós próprios, sem segredos, ou privacidade, sem mistério. Eternas vítimas das primeiras impressões que uma foto, ou um perfil, criam na outra pessoa. Condenados a batalhar contra os preconceitos que daí advém, para podermos quebrar essa barreira invisível que nos separa daqueles que queremos conhecer.

Antes era mais simples. Apenas falávamos. Nada sabíamos sobre a outra pessoa. Podíamos ser quem quiséssemos. Podíamos ser completos estranhos, opostos de quem realmente somos. Podíamos ser aquilo que desejávamos ser. O culminar dos nossos sonhos ainda por realizar. Ou, podíamos apenas ser iguais a nós próprios.

Ninguém consegue manter uma máscara de forma permanente. Aos poucos revelamos quem somos, mesmo para aquele estranho escondido por trás de um ecrã. Despimo-nos de preconceitos, largamos a nossa bagagem, e qualquer espécie de ansiedade que pudéssemos sentir, e começamos a escrever. A contar estórias, a partilhar momentos, música, livros, filmes, e experiências. 

Apaixonamo-nos pela alma da pessoa, pelas longas conversas, pelo seu sentido de humor, e por aquela vontade que nos impele a regressar. A aguardar por aquele ícone verde, por aquele aviso, por aquela luz, por aquele som que faz o nosso coração dar um salto e que preenche a nossa a face com um sorriso parvo.

Tudo isto apenas possível, porque não julgamos a pessoa pela sua aparência, porque não fomos assolados por uma onda de informação perfilada aleatoriamente numa simples pesquisa pelas suas redes sociais. 

Não foi só uma linguagem que se extinguiu com o desaparecimento do IRC, foi também uma filosofia de vida. A liberdade do desconhecido. A ausência de preconceitos, de psicanálise de antecipação, e de prospecção de mercado – termo que pessoalmente abomino. 

Hoje não faz sentido perguntar de onde alguém tecla. A sua localização aparece na base do chat. As videochamadas permitem vislumbrar o local onde esta se encontra. Uma janela directa para o seu mundo privado. A idade, as fotos, os seus gostos pessoais, aquilo que ela leu, viu, onde esteve, com quem, onde trabalha, onde estudou, tudo à distância de um clique, sem sequer precisarmos de lhe dirigir uma única palavra que seja.

Este facilitismo, esta apologia do imediato, fez com que deixássemos de ter tempo para verdadeiramente conhecer alguém. Descartamos incontáveis conversas à partida com base em noções pré-estabelecidas, que podem até não corresponder à realidade.

Estamos expostos e vulneráveis. Somos julgados a cada pedido de amizade, não por aquilo que dissemos, mas por uma análise superficial e fútil daquilo que partilhamos. Somos vítimas da revolução social da internet, e somos hoje tão inseguros atrás de um ecrã como qualquer pessoa num bar, ou em um outro qualquer evento social. Perdemos a liberdade de sermos julgados com uma mente aberta, apenas pelas nossas palavras, pelos nossos conceitos, pelas nossas experiências, e pelas nossas ideias. Somos hoje ignorados por aqueles que nos descartam antes do primeiro Olá. Mas será isso assim tão mau?

Se alguém nos julga pela aparência, pelos nossos gostos, ou por um outro elemento superficial. Se essa pessoa nos bloqueia, ou ignora os nossos contactos, será alguém que mereça a nossa atenção? Não. E o que nos moveu a dar o primeiro passo? Uma foto? Uma partilha de um gosto em comum? Uma convergência de ideologias? A sua popularidade? Ou apenas, simples curiosidade? 

Quando nós próprios também nos deixamos emergir por esse jogo da Internet social, não somos diferentes daqueles que nos julgam. O anonimato é hoje um encanto perdido, relíquia dos tempos do IRC. Contudo, agora é mais simples descobrir as intenções de quem nos procura, e filtrar aqueles que não merecem o nosso reconhecimento.

Aquilo que perdemos em experiências, ganhamos em tempo. Resta-nos saber como, e com quem, o partilhar. 

Thursday, June 05, 2014

O Quiosque da minha Praça

Quiosque Santa Camarão, Ovar
O que a Cidade mais deteriora no homem é a Inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância.
Eça de Queirós

As cidades são ecossistemas vivos em constante mutação. Evoluem, adaptam-se, crescem, e transformam-se. Adequam-se às necessidades da sua população, e da tecnologia que a sustenta. Moldam a geografia dos seus arredores, e convivem em simbiose com a caótica azáfama do dia-a-dia.

Contudo, este desenvolvimento nem sempre é sinónimo de melhoria. Como acontece com a própria Natureza, também a evolução urbana está repleta de exemplos de tentativas falhadas, de projectos inacabados, de ramos extintos, e de mutações erráticas que provaram ser fatais.

Ao longo da nossa vida, assistimos a diversas mudanças em edifícios e locais que, em tempos, nos pareciam constantes, imutáveis, e eternos. A escola que fechou, o parque infantil que deu lugar a um grupo de condomínios, ou a praça que em tempos verdejante, agora não passa de um largo cinzento.

Para mim, um desses locais é um velho quiosque de madeira que há muito deixou de existir. Lembro-me dos finais de tarde de Primavera com o Sol a brilhar nos raios das rodas da minha bicicleta. Rasgos de calor que envolviam os nossos pés, cansados de um longo dia passado na escola.

Passava por aquele quiosque todos os dias. Sempre à distância, fora o ocasional impulso de comprar cromos, guloseimas, ou se alguma colecção me aliciasse a curiosidade. Mesmo assim, ainda era um dos seus clientes mais assíduos.

As suas janelas não precisavam de estar abertas, o simples facto da sua fundação permanecer ali, dava outra alma àquela praça. Era também ele parte da personalidade daquele local. Um ícone constante do caminho que todos os dias fazia entre a minha casa e a escola.

Infelizmente, também ele foi vítima do tempo. A desculpa podia ser a do costume. Ter um quiosque é um negócio arriscado e muito pouco lucrativo, não seria estranho para ninguém que este acabasse por fechar. Contudo, não foi este o motivo que ditou a sua extinção, mas sim a construção de uma estátua.

Diz-se que é uma espécie de estátua. Na verdade, não passa de um mural dedicado a um pugilista em tempos com fama mundial, que, por acaso, vivia naquela mesma praça. O quiosque foi demolido para dar lugar a essa obra, que peca por ser feia, pela sua degradação, e por não se enquadrar com o espaço que a envolve.

Aquela praça que em tempos era visitada por pessoas desejosas de comprar o seu jornal, é agora um espaço esquecido. Uma cápsula do tempo, em perpétua deterioração. Do quiosque apenas restam algumas marcas na calçada. Fora a dita estátua, apenas um velho crucifixo e o esqueleto de uma cabine telefónica decoram o local, rodeado por árvores e alguns lugares de estacionamento.

Sempre que por lá passo, deixo-me envolver por um profundo sentimento de saudade, e de raiva pela falta de visão que tiveram. Ainda havia espaço para manterem lá o quiosque. Este podia ter sido transformado numa esplanada. A praça podia ainda hoje respirar com vida.

Em vez disso, ela é agora um espaço desolado, esquecido, uma sombra daquilo que já foi.

A evolução das cidades traz com ela muitas coisas positivas. Escolas, hospitais, parques urbanos, centros culturais, melhores acessos, e novos espaços de convívio, e de recriação. Contudo, o crescimento urbano não pode esquecer a identidade dos locais. Deve sim, ser feito com estratégias de reabilitação e com objectivos que possibilitem dar uma nova vida ao local.

Como esta, há muitas praças iguais. Não deixem que estas se percam nas memórias dos seus habitantes, dêem-lhe cor, animem-nas, inovem e enriqueçam-nas. Nas ruínas de um quiosque perdido, construam novas recordações.