Tuesday, April 29, 2014

Mousse de Chocolate

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In the sweetness of friendship let there be laughter, and sharing of pleasures. For in the dew of little things the heart finds its morning and is refreshed.

Khalil Gibran 

Todos os dias tento sair um pouco mais cedo para almoçar. Faço isto, não porque dois minutos fazem toda a diferença no que toca a apanhar, ou não, uma fila considerável na cantina, mas sim porque, quanto mais tarde for, maiores são as probabilidades da mousse de chocolate já se ter esgotado.

Esta pequena sobremesa faz toda a diferença no meu dia. É melhor que a maioria das mousses de confecção rápida, apesar de ficar algo aquém das mousses caseiras. Algumas pessoas podem mesmo achá-la banal. Contudo, para mim, não existe comparação entre comer gelatina ou papas de carolo, e mousse de chocolate.

Sofro de uma certa desilusão sempre que chego ao final da fila, apenas para encontrar uma gelatina, ou uma salada de fruta à minha espera. Algo que insiste em acontecer há já algumas semanas. Podia simplesmente desistir de sonhar com a tão elusiva mousse. Podia fazê-la em casa, e deliciar-me sempre que o apetite por ela chamasse. Mas não seria a mesma coisa.

O pequeno indescritível prazer de encontrar uma mousse de chocolate no final da fila do almoço, pode alterar por completo as minhas expectativas para o resto do dia. Ou, simplesmente, oferecer uma diversão das profundas questões que assolam um dia menos solarengo.

A felicidade não depende apenas de uma mousse de chocolate. Estivesse ela disponível todos os dias, e não passaria de mais uma banalidade como a gelatina, ou o arroz que insiste em acompanhar todos os pratos daquela cantina. São os pequenos pormenores, os raros detalhes, que surgem de ocasião em ocasião, e sem aviso prévio, que desenham a beleza do nosso dia. São estas pequenas coisas que dão cor à Vida.

Fosse a mousse banal, e também ela sofreria de incompreensíveis sentimentos de abandono e desprezo. Eternamente condenada a aguardar sob a vitrina. Ansiosa pelo dia em que alguém a escolheria para compor o seu prato. Afinal, “se fosse a mousse também gostaria de ser comida”.

A mousse de chocolate, um olhar de profunda compreensão, o raio de sol matinal que acaricia a tua pele, o último pacote de chicletes de banana, um sorriso inesperado, o lugar livre à porta de casa, um beijo roubado. Momentos. Pormenores. Pequenas coisas que alimentam a nossa alma. Detalhes que nos definem. Enormes réstias de esperança.

A música aleatória que tão bem acompanha um certo instante. A fala de um filme na qual te revês. A palavra que acabaste de descobrir e que aparece em toda a parte. A frase inspiradora que resume todo o teu dia. A mão que te reconforta sem nada pedires. O abraço sentido que não queres largar.

Momentos, em nada diferentes da mousse de chocolate que teimo em perder.

Dêem valor às pequenas coisas. Mantenham um olho atento aos detalhes que alegram o vosso dia-a-dia. Construam a vossa essência, um pormenor de cada vez. E felicitem-se com uma mousse, para celebrar cada sentimento de dever cumprido.

“O sucesso é a soma de pequenos esforços, repetidos dia sim, e no outro dia também”, Robert Collier.

Friday, April 04, 2014

Vontade de Viajar

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Sou incapaz de ouvir a Dreams dos The Cranberries, sem ser transportado para a minha infância, e para as longas manhãs de fim-de-semana, passadas na estrada em viagem. Lembro-me de a ouvir enquanto contemplava as paisagens, no banco de trás do carro dos meus pais.

Raro era o fim-de-semana em que não íamos passear. Os destinos variavam, mas além da anual viagem à Galiza para comprar rebuçados, não íamos para lá das nossas fronteiras. Hoje parece algo impensável, mas vivemos uns reais anos de fartura durante a década de noventa. Eram os anos das duas semanas passadas no Algarve, quase sempre em Quarteira. Os anos dos almoços de Domingo em restaurantes, e das quase rotineiras viagens pelos cantos do país.

Estou longe de poder dizer que conheço Portugal tão bem como as palmas da minha mão. Por melhor que seja a minha memória, a verdade é que na altura pouco valorizava essas viagens. Retenho lembranças dos perpétuos enjoos, de planícies e montanhas, de casas rústicas, de idosos e de turistas, de doces e guloseimas. Meras fotografias que era demasiado novo para valorizar.

Nos últimos anos tenho procurado fazer jus a essas recordações e, sempre que possível, procuro revisitar algumas dessas terras ou regiões que figuraram apenas de passagem durante a minha infância. Ovar, Porto, Coimbra e Covilhã conheço demasiado bem, ou não fossem estas cidades sinónimo de casa, num ou outro período da minha vida.

Pela proximidade, cidades como Aveiro, Gaia, Gondomar, Espinho, Santa Maria da Feira, S. João da Madeira e Oliveira de Azeméis, conheço tão bem como aquelas em que vivi. Posso não saber o nome, ou o número das ruas, mas fosse eu posto lá e conseguia orientar-me. Mas estes locais apenas representam quatro dos dezoito distritos nacionais.

Começando pelo sul, o Algarve é talvez a região que melhor conheço a seguir àquelas que referi em cima. Embora já não passe lá férias desde 2011, as minhas mais recentes visitas serviram também para revisitar alguns dos aspectos algarvios que passam ao lado de quem vai lá apenas para fazer fotossíntese, e dar uns mergulhos. Quarteira, Armação de Pêra, Albufeira, Tavira, Montegordo e Manta Rota, são as praias que melhor conheço, ou não tivesse lá passado as férias de Verão durante anos a fio.

Sagres, Portimão, Castro Marim e Vila Real de Santo António, eram paragens obrigatórias nos passeios que a minha família dava aquando da nossa estadia. Duas semanas de praia sem outra qualquer espécie de entretenimento podiam apenas resultar em tédio, não fosse a nossa vontade em conhecer algo mais. Era também comum dar-mos um salto a Ayamonte em Espanha, mas além da travessia de barco, não guardo nenhuma recordação em particular.

Até recentemente, de Faro apenas conhecia o estádio, por obra do WRC, pecado que já corrigi nos últimos meses. Seguindo em direcção ao Alentejo, confesso que fora algumas paragens para almoçar, uma esporádica visita à Barragem do Alqueva, ao Fluviário de Mora, à antiga, e à nova Aldeia da Luz, apenas conheço Beja e Évora.

De Portalegre, e de Setúbal, muito pouco tenho a acrescentar além das habituais passagens. Já visitei Almeirim e Almada. De Castelo Branco retenho um almoço no Aquário, e uma exposição de fósseis de Dinossauros em tamanho real que visitei em 2010. Assim como a Serra da Estrela e a sua Torre, que já subi no Inverno e no Verão, e a encontro sempre diferente.

Santarém, se visitei, está há muito perdido em ínfimas recordações. Já Tomar, Ourém, e Caldas da Rainha estão bem presentes, não tivessem passado poucos anos desde as minhas últimas visitas. Em Leiria, não visitei o castelo. Na Nazaré não fui à praia. Fátima conheço demasiado bem. Raro é o dia que não desejo voltar a provar uma estrela da pastelaria Milano. Muitas foram as vezes que atravessei a Pedreira do Galinha na Serra de Aire, apenas para descansar numa pegada de Dinossauro.

Conímbriga tenho que rever, um dia, em breve. A Lourinhã também. Ainda não vi as novas exposições do seu Museu de História Natural. Viseu é sinónimo de ciclismo, e raro é o ano que lá não vou assistir a uma chegada da Volta. Braga e Guimarães, conheço tão bem como Fátima. À primeira vou regressar por alguns dias ainda este mês.

De Trás-os-Montes conheço apenas o Gerês, mas retenho algumas maravilhas ainda por explorar. O Douro vinhateiro mantém-se apenas presente nas minhas memórias, assim como Vila Real e Bragança, onde há muito não regresso. Viana do Castelo, Valença e Miranda do Douro, são três pontos na fronteira que aos poucos fui conhecendo.

Lisboa, não vejo como uma cidade portuguesa, mas como um principado, distinto e alheio ao resto do país. Visito-a sempre que possível, não fosse esta o centro dos grandes, e dos pequenos eventos que mais quero assistir.

Já muito conheço, mas ainda mais há para conhecer. É difícil enumerar tudo aquilo que já visitei e que conheci. Assim como tudo aquilo que ficou por conhecer. Agora que me aventuro por voos mais longos, não me esqueço da beleza que estas fronteiras mantêm reservada para mim. E assim sonho em viajar.

A Dreams continua a tocar, a paisagem ainda se estende até ao horizonte, mas agora, sou eu quem vai a conduzir.

Thursday, April 03, 2014

Valor da Amizade

Carnaval de Ovar, 2011
Vivo acompanhado por todas as memórias que vivi. Cada momento tão presente como o agora. Cada superfície tão real como este teclado. Cada sabor, cada cheiro, cada som. Múltiplos Eus, envoltos numa conversa constante. Em silêncio observam. Vivem o Hoje comigo, sonham com o Amanhã, e sorriem com o Ontem de cada um. Um talento, uma maldição. Enfim, o contexto. Apenas o contexto pode responder.

Tem as suas vantagens, não o nego. Neste momento enquanto escrevo, não estou aqui. Transporto-me para aquela tarde de Agosto em 2011. Estou em Roma, no Coliseu, a olhar para as ruínas do Fórum Romano em frente. O Luís está ao meu lado de câmara na mão. Sinto o sol a acariciar o meu rosto. Sorrio e deixo-me envolver pelo calor.

De todas as viagens que já fiz, esta é aquela que mais vezes procuro relembrar. Aquelas noites quentes a beber Bacardi no jardim do Hostel em San Giovanni. As viagens de autocarro sem pagar, sempre atentos aos míticos revisores que pareciam não existir. Sentir o peso de séculos de História a cada passo que dávamos. Guardo essa viagem com um profundo sentimento de saudade, e com uma igual vontade de um dia lá regressar.

Esta foi também a última grande viagem que fiz com os meus amigos. Tínhamos a ambição de fazer uma todos os anos. Por diversas vezes reunimo-nos para tentar marcar a próxima, mas sem efeito até hoje.

É raro encontrar um grupo de pessoas com quem partilhamos um vasto leque de interesses, mas que além de concordarem entre si, também são capazes de debater os seus pontos de vista, de se complementarem, e de gozarem uns com os outros. Um grupo capaz de estar lá para partilhar os bons momentos, mas que também seja capaz de se apoiar nos piores.

Todos temos os nossos defeitos, e as nossas virtudes. Evoluímos a cada dia que passa, a cada conversa que temos, a cada ideia que partilhamos. Construímo-nos introspectiva e socialmente, através da cultura que consumimos, e das experiências que partilhamos uns com os outros.

Não é necessário definir a amizade, tal como o amor, é algo que se sente, que começa num instante indefinido, e que se propaga através do tempo. Sem nos apercebermos que está a acontecer.

Tal como o romancismo, também a amizade é hoje vítima de uma perpétua desvalorização. Chamas amigos aos contactos do facebook com quem nunca falaste, ou conviveste. Sais com desconhecidos sem nunca debateres uma única ideia, por mais básica que seja. Perpetuam um silêncio amorfo e incomodativo, sem qualquer ambição por algo mais. Fala-se em códigos, ignoram-se relações. Estás lá por conveniência. Aborreces-te, e continuas sozinho por entre uma multidão. E quando chega aquele momento em que precisas muito de alguém, vais estar só. Pois, isto não é amizade.

A chamada friendzone apenas perturba esta equação. Pois se não pode haver amor sem amizade, porque continuamos a acreditar que o oposto é impossível? Talvez funcione melhor se nos deixarmos envolver pela paixão, e formos construindo a amizade pelo caminho. Mas sem amizade, nenhum amor sobrevive. Quando uma ligação é real, não importam os anos, ou os momentos que partilharam. Há algum risco, talvez, se a vossa amizade não for construída numa base de comunicação aberta e de confiança. Um risco que vale a pena. Por mais longa que seja a passagem das águas sob a ponte da mágoa, chega enfim o dia em que estas cessam, e a amizade pode ser reconstruída.

Em tempos disseram-me que não se luta por uma amizade. “Se não se luta por uma amizade, que mais há pelo qual lutar?” Foi esta a minha resposta, e ainda hoje a mantenho.

Não usem este termo em vão. Sejam bons amigos. Não tenham medo de entregar um pouco de vós. Não o façam ao desbarato. E não se fechem por entre quatro paredes. Por mais ocupada, ou complexa que seja a vossa vida, há sempre tempo para um café. Por mais anos que passem, quando a amizade é real, o sentimento mantém-se.

O valor da amizade é algo que vale a pena ser defendido. É algo pelo qual devemos sempre lutar. Não pensem em demasia. Não deixem para amanhã. Regressem comigo àquela tarde em Roma. Explorem. Cresçam. E não se esqueçam de se divertir.

Anoiteceu. Estou sentado naquele jardim a beber Bacardi e a contemplar a beleza da noite romana. Uma memória agradável, ainda hoje tão presente.

Wednesday, April 02, 2014

Até sempre Ted, até já Covilhã

How I Met Your Mother
Faz hoje um ano que me mudei para a Covilhã. Um dia para recordar, mas também ele, um dia de recordes. Esta não é só a cidade em que mais tempo vivi fora daquela a que gosto de chamar de casa, é também o emprego mais longo que já tive na minha curta carreira.

O dia 2 de Abril marca, para mim, o início de uma nova era. A era pós-How I Met Your Mother. Ao fim de nove temporadas, seis das quais como espectador assíduo, vejo-me enfim privado daqueles vinte e três minutos de humor que ocuparam as minhas noites de terça-feira ao longo dos últimos seis anos.

Foi em Setembro de 2008 que tive pela primeira vez contacto com a série. Já tinha ouvido comentários por alto, em conversas entre o Paulo e o Luís. Durante esse Verão foram incontáveis as vezes que ouvi o Luís dizer, It’s gonna be Legen... Wait for it. Dary! Legendary, sem saber a origem dessa expressão.

Lembro-me de me contarem a premissa da série, já de noite, quando regressávamos do Furadouro depois da nossa habitual corrida. Pela sua descrição pareceu-me ser um drama idêntico a One Tree Hill, mas mais adulto. Não foram capazes de suscitar o meu interesse, mas mantive alguma curiosidade.

Numa tarde em Setembro, encontrava-me aborrecido e decidi pesquisar alguma informação sobre a série. Quando vi que o elenco incluía a Cobie Smulders, que conhecia como Juliet na série Veritas: The Quest, decidi ver o primeiro episódio.

Os vinte e três minutos de duração, o tom da cinematografia, e os cenários fixos, revelaram de imediato que estava perante uma sitcom, e não um drama como me fizeram entender. Esse episódio prendeu-me de imediato. Revia-me tanto no Ted que chegava a ser assustador.

Nas semanas seguintes nada mais fiz que ver os episódios das primeiras três temporadas. Deitava-me a pensar na série. Acordava com vontade de correr para o computador para ver mais um episódio. Ficava acordado, madrugada a dentro, a ver as peripécias do Barney, a admirar a forte ligação entre o Marshall e a Lily, e a torcer para que o Ted fosse capaz de reconquistar a Robin, secretamente sonhando que fosse ela a Mãe.

Consegui recuperar as três primeiras temporadas da série antes que a nova começasse. Foi uma sensação estranha ter que esperar uma semana por um novo episódio, quando estava habituado a vê-los de seguida até me cansar. Custou, mas consegui adaptar-me.

Ao longo dos anos a série perdeu alguma da sua qualidade. As últimas temporadas tinham um sentimento de repetição, e de humor forçado que quase me fez deixar de a seguir. Felizmente, sempre que How I Met Your Mother atingia um ponto baixo, surpreendia-me com um daqueles episódios que me fazia relembrar o sentimento que me prendeu às peripécias deste grupo de amigos, naquelas noites de fim de Verão, em 2008.

É estranho imaginar uma semana sem esta minha companhia das terças à noite. Contudo, uma boa história é aquela que sabe quando deve terminar, sem se alongar mais tempo que o necessário.

Hoje despeço-me de How I Met Your Mother, e agradeço aos seus criadores Carter Bays e Craig Thomas, por nos deliciarem com esta bela história, e com um elenco fantástico que fez dela o sucesso que sempre foi.

Despeço-me desta série, mas não da Covilhã. Se não houver nenhum imprevisto, por cá continuarei por mais um ano. Um ano para continuar a crescer. Para desenvolver os meus conhecimentos, e as minhas capacidades. Um ano para investir naquilo que me faz feliz. Um ano para seguir em frente. Um ano para começar a construir o meu sonho.

Até sempre Ted, até já Covilhã.

Tuesday, April 01, 2014

Quarenta e Dois

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Quarenta e dois minutos. É o tempo que demora o comboio Intercidades a completar o percurso entre Coimbra e Ovar. Quarenta e dois é também a resposta para o sentido da vida, e para os mistérios do Universo. Isto, se confiarmos no Hitchhiker’s Guide to the Galaxy.

Durante a breve temporada que vivi em Coimbra, fiz esta viagem quase todas as semanas. Quarenta e dois minutos passados a ler, a ouvir música, ou em profunda introspecção.

Coimbra sempre esteve a quarenta e dois minutos de distância, mas, para mim, pareciam ser muitos mais. Aquela cidade foi uma constante ao longo da minha adolescência. Cheguei mesmo a achar-me uma espécie de antípoda de Cesário Verde. Enquanto este ia ao campo para renovar as suas energias, eu usava a cidade de Coimbra com o mesmo propósito.

Foi lá onde vivi a minha primeira paixão, tão fugaz como o pôr-do-sol sob o Mondego. Foi lá também onde construi uma das poucas amizades que tive ao longo daqueles terríveis anos. Amizade essa, também ela efémera, mas que em muito ajudou a definir aquilo que eu queria para a minha vida.

Via Coimbra como uma cidade banhada pelo Sol. Repleta de esperança e de velhos prenúncios de romance. Apesar dos constantes agoiros, sempre a vi como um local optimista. Um ponto de partida para algo.

Em 2009, era lá que sonhava encontrar-me com aquela que até há bem pouco tempo ocupava o meu coração. Era o meio caminho entre Porto e Lisboa. O local certo para o nosso primeiro encontro. Mas assim não aconteceu.

Foi com alguma surpresa, e um leve sentido de ironia, que descobri que esta seria também a minha primeira paragem no mercado de emprego. A minha primeira experiência a viver sozinho, longe de casa.

A perspectiva de ocupar o meu tempo com algo mais que o Mestrado, ganhar experiência, e um salário fixo no fim do mês, calaram o receio que assolava a minha mente. Talvez devesse ter prestado atenção aos meus instintos, mas estava destinado a aprender com os meus próprios erros.

Cedo senti os anticorpos da cidade a expulsar-me. Numa noite de Setembro, tinha regressado do trabalho. Sem nada para comer, decidi ir ao Continente que ficava no fim da rua. Ameaçava chover, mas não tinha guarda-chuva e não havia nada mais perto. Apanhei aquela que apenas posso descrever como a maior molha da minha vida. As pessoas olhavam para mim, completamente ensopado, com estranheza, alguma pena, e uma certa quantidade de gozo.

Esta foi apenas a entrada para uma refeição repleta de intempéries. Da falta de organização da empresa onde trabalhava, a uma chefia incompetente e com falta de visão, sofria de uma pressão constante e sem fundamento. Fazia o melhor que podia, mas o mérito era sempre desprezado.

Um quarto minúsculo e húmido, num apartamento apertado e sem qualquer tipo de convívio com os restantes colegas, não ajudaram à equação. O sistema imunitário da cidade era forte. Eu era um ser estranho e nada bem-vindo.

Fui resiliente e não me conformei. Dei o meu máximo para me valorizar e procurei avidamente por uma oportunidade para sair dali. Demorou algum tempo, mas essa oportunidade acabou por surgir. O Porto voltou a chamar por mim, e acolheu-me de braços abertos.

Saí à pressa de Coimbra. Não olhei para trás. Não dei espaço para despedidas. Nunca fui tão feliz como naquele momento. Coimbra tem mesmo mais encanto na hora da despedida.

Nos últimos anos, lá regressei apenas uma vez para preparar uma entrevista para um episódio do Reacção Espontânea. Foi uma visita breve, com poucos percalços. Infelizmente, não posso dizer o mesmo dos dois dias que lá passei na semana passada.

A chuva, o frio, e o cinzento da nebulosidade, adivinhavam um mau presságio. Aquela Coimbra ensolarada que em tempos me fazia sonhar, já não existia. Hoje, não passa de uma sombra daquilo que em tempos foi.

Essa predisposição negativa, aliada ao cansaço e a algumas expectativas desmedidas que criei sob mim próprio, toldam as memórias dos bons momentos que vivi nestes dias. Acelerei um processo que precisava de calma, de estabilidade, e de um optimismo energético que me esqueci de alimentar. Sufoquei-me sob pressão, e esqueci-me de mim próprio.

A culpa não é da cidade, mas sim das circunstâncias. Estou hoje coberto por uma aura negativa da qual tenho que me livrar. Não culpo Coimbra, mas questiono-me se algum dia voltarei a vê-la com aqueles olhos de esperança e felicidade, que em tempos ajudaram-me a confiar em mim próprio, e a erguer-me das sucessivas quedas que animam o meu caminho.

No livro, seis vezes nove é a pergunta cuja resposta é quarenta e dois. Mas seis vezes nove são cinquenta e quatro, e não quarenta e dois. O verdadeiro sentido da vida, é que esta não faz sentido. O Universo tem erros, buracos, tropeções. Cada um deles uma imperfeição que lhe dá personalidade. Imperfeições que tornam belo o percurso que hoje caminhamos.

Quarenta e dois minutos entre Ovar e Coimbra. Apenas quarenta e dois minutos de uma longa viagem.