Monday, March 31, 2014

Brinquedo Partido

Imagem DR
Quando era pequeno recebi uma garagem pelo Natal. Tinha cerca de quatro andares e uma pista em espiral. Passava horas a montá-la e a desmontá-la, fazendo corridas imaginárias com os meus carrinhos. A garagem era composta por peças de plástico. Pistas cinzentas com autocolantes, vigas vermelhas e pequenas molas para unir as pistas uma à outra.

Era possível montá-la de diversas formas, e assim me entretinha, a experimentar um novo design a cada dia que passava. Mas esta minha felicidade estava destinada a ser fugaz.

Numa tarde de Inverno, estava a brincar com a garagem na sala da minha avó. Levantei-me para mudar o canal na velha televisão Philips, idêntica àquela que ainda hoje deve ocupar o seu espaço no bar do meu liceu. Ao mudar de canal tropecei e caí sobre a garagem. A dor que senti naquele momento em nada se comparava com a mágoa que me envolveu, ao ver o meu brinquedo preferido ali, partido, sem remédio.

As pistas mantinham-se intactas, mas muitas das vigas estavam partidas. Tentei colá-las, mas sem efeito. Nada havia a fazer. Arrumei a garagem junto dos outros brinquedos, e ali ficou. Esquecida para sempre numa caixa de cartão.

Com o passar dos anos, vítima de incontáveis arrumações e desarrumações, e perdida por entre as mudanças, as peças que em tempos compunham a garagem, espalhavam-se agora por sacos, caixas, e gavetas. Perdidas entre brinquedos e outras efemeridades da minha casa.

Há pouco mais de um ano, tirei alguns dias para organizar os meus velhos brinquedos. O meu objectivo era recuperar aqueles que ainda retinham algum valor sentimental, organizá-los e dar-lhes um descanso mais digno do que ficarem apenas amontoados num canto do sótão, ou do coberto do meu quintal. Coberto esse, onde eram vítimas constantes de humidade, gatos passageiros e outras intempéries que os assolavam ao longo dos anos.

Por entre os sacos e caixas velhas, encontrei vários brinquedos partidos, ou avariados. De carros auto comandados, a formas de praia, e figuras partidas. Alguns, como a minha colecção de Legos ainda tiveram salvação. Outros, foram remetidos para uma caixa de objectos perdidos, ou até mesmo para o inevitável lixo.

Contudo, enquanto mergulhava por aquele mar de peças, ia encontrando alguns pedaços dessa velha garagem. Uma viga. Um parafuso. Um pedaço de pista. Todos juntos talvez dessem para compor um terço da garagem original. Ali continuavam, dispersos, partidos, inúteis. Mas ali continuavam.

Tivesse eu mais cuidado, e talvez hoje fosse capaz de a recuperar. Tivesse eu mais atenção ao levantar-me naquele fatídico dia, e talvez hoje ainda a pudesse montar, e reviver um pequeno pedaço desse sentimento de infância que há muito perdi.

Uma memória destacou-se das outras quando encontrei a primeira peça. Já na minha adolescência, estava a fazer compras no velho Modelo de Ovar e vi lá a garagem em destaque. Todas as lembranças daquelas tardes a brincar com ela, na casa da minha avó, vieram ao de cima. Queria levá-la comigo. Voltar a montá-la, e substituir o brinquedo partido por um novo. Quis fazê-lo, mas não o fiz.

Parte de mim ainda se arrepende de não o ter feito. Era adolescente e não fazia sentido gastar dinheiro com brinquedos, ou assim pensava. Se hoje a voltasse a encontrar à venda, consoante o preço, era capaz de a comprar. Mas tal acto não passaria de um mero descargo de consciência.

Aquela não seria a minha garagem, apenas uma réplica. Um simples substituto que chegara tarde demais. A minha garagem, hoje, não passa de uma amálgama de peças soltas e desunidas. Uma sombra daquilo que em tempos foi. Um brinquedo partido. Apenas um brinquedo partido.

Thursday, March 06, 2014

Her

Her, Spike Jonze
Falling in love is a crazy thing to do. It's like a socially acceptable form of insanity.

Amy, Her (Spike Jonze, 2013)

“Uma história de amor”. Um título adequado para um filme que é, na sua mais pura simplicidade, e antes de qualquer outra designação, um filme sobre Amor. Um amor impossível, talvez, mas real naquele singular universo, retratado sob a visão de Spike Jonze.

Her conta a história de Theodore Twombly, um escritor de cartas, um intermediário de emoções reais entre pessoas fictícias. Um instrumento de contacto, uma ferramenta de proximidade, para quem há muito desistiu de procurar em si próprio algo real para partilhar com a pessoa que ama. Cartas reais, escritas à mão por computadores. Fictícios pedaços de papel. Objectos da imaginação, da inspiração, das emoções de um intermediário escritor. Só, entre uma multidão de fictícias personagens, desligadas entre si. Mas Her não é uma crítica social.

Her conta a história de Theodore Twombly, um divorciado, desligado do resto do Mundo. Vítima das suas falhas de comunicação, da sua incapacidade de encarar os problemas. Da profunda depressão do seu dia-a-dia, e de uma relação que há muito não partilha qualquer sentimento de paixão, de desejo, ou de amor. Mas Her não é o percurso de um Homem pelos diversos estágios de luto, e de aceitação.

Her conta a história de Theodore Twombly, um Homem que compra o primeiro Sistema Operativo regido por uma Inteligência Artificial. Uma existência que questiona o que faz de alguém, ou de algo, Humano. Uma existência que redesenha a definição de alma. De vida. De consciência. De existir. Da essência do próprio ser. Mas Her não é um filme de ficção científica, nem tão pouco um ensaio filosófico.

Her conta a história de Theodore Twombly, um escritor de cartas divorciado, e de Samantha, um Sistema Operativo com Inteligência Artificial. Uma história de amizade, de descoberta. A história de um amor improvável. Um amor impensável. Um amor tão puro e honesto como qualquer outra história alguma vez contada, e ainda por contar. Uma história de paixão, de desejo. De encontros. De namoro. De descoberta. Uma história de amor.

Um guião construído sob as subtilezas do percurso natural, que orienta o romancismo de uma relação. Uma cenografia bela na sua simplicidade. Futurista, mas próxima. Tão real como o menos distante dos amanhãs.

Um design de produção discreto e inteligente. Tão sólido como a transição das cores da roupa de Theodore ao longo das estações. Do salmão da Primavera da sua relação com Samantha, ao amarelo do Verão do amor que ambos partilham. Do castanho, e promíscuo Outono, até ao branco Inverno deste seu novo mundo.

Uma interpretação a rasar o perfeito. Um elenco de luxo, protagonizado por um Joaquin Phoenix, sem medo de sentir. Sem medo de chorar. Sem medo de amar.

Um mundo tão próximo de nós. Um mundo que é já nosso, sem nos apercebermos. Um mundo interligado na sua solidão. Sempre em contacto, mas eternamente sós. Sempre próximos, mas a uma distância constante. Um mundo onde é mais simples criar emoções, do que senti-las. Isolar-nos em nós próprios, em vez de enfrentar os nosso problemas. Fugir, em vez de falar.

Mas Her também é um mundo de possibilidades. De novas formas de amar. De estar presente, mas ausente. De dar valor ao sentimento, ao diálogo. À profundidade do coração, e da alma de cada um. À essência. Ao doce sabor de partilhar a tua vida com alguém. De sentir uma ligação mais forte do que os limites do real, e do imaginário. De sermos um, sem as barreiras do preconceito, do fútil, do físico, do visual.

Um mundo onde é possível apaixonarmo-nos tão completamente, que até o mais céptico dos cínicos não consegue ficar indiferente.

Her é um filme sobre Amor. Não sobre a relação Homem/Máquina. Não sobre a falsa sociedade em rede. Não sobre a depressão, ou o isolamento. Mas sim, sobre um Amor à distância. Um Amor real. Um Amor completo.

Her é uma história de amor.